Estágio primeiro: O sete de oiros
Ora bem, eu não gosto de David Bowie, não gosto de Dream Theater ou de Vivaldi, não sinto nada a ouvir Jeff Buckley ou Bob Dylan, detesto os Beatles e os U2. Só gosto de uma ou duas músicas de Bauhaus e o mesmo se passa com os 69 Eyes. The Cure aborrecem-me ao final de meia hora, o mesmo se passa com Placebo e Clan of Xymox. Não gosto de Siouxsie & the Banshees ou de Nina Hagen mas admiro as senhoras. Não suporto Epica e podia ficar aqui a noite toda.
A mais anuente discípula espelha rapidamente o ódio desde a raiz até às pontas.
Estágio segundo: A lua
Está a rodar aquele cd que veio na última edição que comprei da Elegy Ibérica mas o quadro funerário do unplugged dos Nirvana que nina aos acordes únicos da The Man Who Sold The World não me sai da cabeça.
Alumiado por velas pretas e com boas doses de lírios brancos, um impossivelmente belo Kurt Cobain, de casaco de lã dedilha a guitarra e apazigua o sal do Mundo.
Os cabelos amarelos e intoxicados a caírem-lhe pelos olhos doentes, imensos e tristes, olhos mostrando que mesmo no remoinho de doses e doses generosas de escapismo não perderam o orgulho de animal selvagem, a vontade de alma presa que quer retornar ao criador.
Ninguém poderia ter oferecido a esse desespero uma visão cinemática tão bem conseguida quanto Gus Van Sant.
Acorre-me à memória, a última cena, aquela onde a alma do Blake se desata do casulo e sobe pelo gradeamento da janela francesa em direcção a casa.
Estágio terceiro: O Cavaleiro de espadas
Afinal não há esperança.
As the sun hits, she'll be waiting... canta o vocalista dos Slowdive, banda a que estou a apresentar os meus ouvidos e inteiramente todo o meu ser, pela mão dos Alcest.
Já que o dito vai participar no novo álbum dos franceses, é bom que me aclimate à voz e estou a gostar, não há esforço algum a fazer.
Aos catorze anos abandonei a escola e aos dezasseis tive o meu primeiro trabalho, nessa casa havia uma rapariga de cabelos pretos chamada Natércia que ainda hoje abomino.
Acho que o meu desencanto pela vida deve ter agravado a minha capacidade de adaptação àquele sítio, ainda hoje, se passar pelo local sinto desconforto… ninguém andou à pancada, ninguém morreu mas a contrariedade e o desencanto e a melancolia, sim, pululavam dentro de mim e foi muito difícil concentrar-me no essencial.
Acho que já escrevi para aqui que não gosto particularmente de comer à frente de estranhos e, lá, inventava sempre qualquer coisa para poder comer na cozinha longe deles. Não, não sou anoréctica.
Já não me lembro por que carga de água desatei a chorar mas era um choro familiar, um pranto de sufoco, de desespero, de fundura que se desbravou quando fugi dali para a estrada.
Podia muito bem, a gravidade, ter-se cessado para que as minhas costas se pudessem colar de supetão à superfície lunar.
Passava a maior parte do tempo em silêncio e a Natércia de cabelos escuros e corte anos vinte resplandecia em ares de sobranceria no quanto era experiente, dinâmica, aventureira, forte e vivaça, imiscíveis éramos.
Acho que ela me achava aberrante, quando não me via com desdém.
O meu mais recente cão, um pequenino ladino e castanhito abandonado rafeiro, é muito assustadiço, então cada vez que lhe vou levar comida e tento brincar com ele, ele inclina a cabeça e, angular e mecanicamente esparsa os olhos, confuso e perscrutador, exactamente a reacção dela.
Costumava dormir no quarto de uma senhora com alzheimer mas, depois, comecei a dormir no quarto com a moça, ambas detestávamos e eu preferia mil vezes a velhota nas suas mil e uma inquirições sobre a minha identidade do que a menina que fazia questão de passar o seu caro creme nocturno, usar um pijama moderno e falar alto com o namorado ao telemóvel entre sorrisinhos excitaditos.
Estavas tão longe sua idiota, se querias provocar a minha inveja, estavas siberiana de lonjura.
Ela queria forçosamente transparecer o quanto era urbana, moderna, emancipada, ah e não esqueçamos que usava dois cremes diferentes consoante fosse a lua ou o sol a banhar-lhe a tez.
Havia que mostrar à campónia o que era uma rapariga com maneiras.
O que será que eu fazia dentro de mim, nessas alturas?
O que mais detestava era o seu sorriso de condescendência quando se queixava de mim à madame, ou quando foi mexer no meu saco… talvez procurando pelo meu caderno medicamentoso, (não vou dizer o que encontrou em vez disso) mas hoje que penso nela, refundo a minha posição: não me dou bem com mulheres, a maior parte traiu a minha confiança, a maior parte soa aborrecida, chata, moral, preconceituosa, pequena, retrógrada, consciente demais.
Contudo, as que tenho comigo, estão-me junto ao coração e são raras, amigas mulheres nunca foi o meu forte.
Todas as raparigas dessa época me enojam, as da escola, as da família, as do trabalho, todas miudezas, más, idiotas, ainda as detesto, o ódio em mim é continuo, desde a energúmena da escola primária que me ridicularizava, a esta fulana que trabalhou comigo até eu apanhar a oportunidade de nunca mais lá pôr as patinhas, queria voltar a estudar, disse eu, um dia, e voltei depois de outros trabalhos, depois de outras experiências, depois de outras estações os mesmos olhos cadavéricos a mesma esperança morta.
As the sun hits, she'll be waiting
With her cool things and her heaven