“We are like roses that have never bothered to bloom when we should have bloomed and it is as if the sun has become disgusted with waiting”.

18
Set 09


Prelúdio


Viam-se-lhe os pés no fundo do vestido.

O corpo dobrado no baloiço.

As estrelas tinham pé e andavam no veludo.

A noite vestida de nevoeiro.

Para a frente, para trás, os ramos.

O movimento recortava o silêncio.

As árvores ondulavam com placidez.

Noite morna.

Sem seguimento.

Esperava-se calmamente, na apatia de quem mecanicamente espera.

Aquele tempo em que, se fosse uma estória, não haveria pontas.

Há o ali.

O agora.

A cabeça lateja no quarto.

A semana de precária finda-se.

Criei-me contra mim.

Alimento um parasita.

O sangue é em dobro.

Não há paz.

Não acredito em mim.

Uso.

E vitimizo.

A cabeça continua aqui.

Tenho medo.

Estou vazia do lado esquerdo e direito.

Estão vazios os lugares que me rodeiam.

Não tenho vida neste mundo.

Acho-me secular.

 

I 

 

 Hoje faço anos.

 

Enquanto continuaste a crescer eu estanquei no meu buraco lodoso.

Não quero magoar ninguém.

Todos os outros sou eu.

E eu sou todos eles.

Só existe Deus no mundo.

E todos eles são a repetição de Deus.

A sua viagem experimental por vários casulos.

Sofremos em doses abismais porque Ele é desmedido.

Sofremos como deuses.

Sofremos num só.

Diz-se, que à noite, existe só a verdade das almas e, de dia, a mentira dos corpos.

Eu estou no limbo, não sou metade verdade, nem inteira mentira.

Precisa-se de abundância para morrer.

Porque todas as janelas estão lacradas

Todas as portas são demasiado pequenas.

De um lado e do outro.

A pequenez da impossibilidade.  

 

II


 

  É a morte distendida no meu peito

 

Forçando a continuação miraculosa.

Olhos pesados noite após noite.

Corpo estendido.

Pesadelos que cheiram a instabilidade.

Enrolar-me num novelo e hibernar até ter vontade de estar…

Às vezes chega tão forte e tão violenta que nada a ofusca.

Rebenta-me dentro do peito e o sangue aguado distende-se.

Fico absorta até ao topo, cheia, como uma lâmpada acesa há dias.

E enchem-se os meus braços.

Brotam os meus olhos.

Cerram-se os meus dentes.

E, por fendas nas costas e nos dedos, escorre.

 

 

III 

 

 Aqui, ali e também acolá

 

Às vezes, apetece-me ouvir raiva.

Às vezes, apetece-me saber que vocês estão partidos.

Todos.

Vai e vem.

Vai e vem, sempre.

Eternamente.

Sinto-me desalojada.  

IV


 

Tudo e em todo o lado

 

O que será que move o mundo?

O que nos move?

Qual é a essência?

Por não querermos andar, será que perdemos as pernas?

As estórias de princípio, meio e fim são aquilo que mais recordo.

Mas à medida que crescemos e nos embrenhamos na vida, mais distorcemos o passado, mais sobrevivemos ao presente e mais adormecemos o porvir.

A vida é uma estória mal contada e sem pés nem cabeça. 

 

 

V


A dama de paus

 

Sete, o número.

O corpo que não se pode dobrar.

Diz que sabe mas usa a maldade para colher a distracção, de buracos no corpo estático.

Não conhece a estabilidade cerebral.

Tem medo do outro.

E tem cabelos virginais.

As coisas especiais são mantidas em coma, para que o seu cérebro não lhes toque e as distorça.

É a dama de paus.

A flor a fingir.

O corpo de máscara de vida transviada.

Dorme.

Não dói.

A antecâmara.

Lembro-me.

Sou uma velha de séculos.

Perdida neste mundo.

Uma velha que prossegue a reencarnar em sítios deslocados e pessoas que não são dela.

Não tens culpa, disseste-me para dormir.

Eu sou asfixiante.

O estado de embriaguez.

O estado de corrosão.

O sentido de anestesia.

A antecâmara.

Não dói.

Dorme.


VI


 

A religião cristã nasceu do sangue, proliferou pelo sangue e só será lavada pelo sangue.


 

 VII


 

A espada que te fere é aquela que te salva

 

Perdoar de olhos fechados

O que te ficou eu não quero.

Uma montanha sem escadas nem carreiros.

Precisava de poder carpir.

Carpir o que criei com aquelas sementes.

Como é fácil ao corpo a sepultura disse um dia Camões. 

 

 

VIII


 

Conta-me uma história

 

Conta-me uma história.

Sou uma ovelha.

Uma ovelhinha de lã branca.

E não sei de nada.

De nada sei eu.

Ando por terras desconhecidas.

Marcam-se carreiros ardilosos nas minhas patas descobertas.

Deslizo por entre um pardo pântano, saio de lá rã e procuro matar a fome.

Tenho a pele viscosa e as folhas mortas cobrem-na.

Agora sou boneca.

E os meus olhos não se movem, as pálpebras fecham-se sobre eles.

 

24 de Agosto, 2009


publicado por Ligeia Noire às 15:03
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