I
Todas as vezes que estive lá.
Todas as vezes que ajudei a engolir a dor.
Todas as vezes que arranquei pedaços podres e que magoavam, àqueles de quem eu cuidava com tanto enlevo.
Todas as vezes que o peito enegrecido ficava transparente para os acolher e lhes limpar a alma.
Todas as vezes que chorei porque fazia doer ver-lhes as lágrimas.
Todas essas malditas e insuperáveis vezes que eu estive lá.
Que eu deliberadamente quis estar.
E das quais não me arrependo porque as considero de uma sepulcral e cândida beleza.
Uma beleza que alguém, engenhosamente, nos deixou partilhar e, assim partilhando, se criar correntes de aço.
Uma corrente para momentos de queda livre.
Uma corrente que nos aprisiona quando nos damos em redenção, em escudo para sermos flagelados, ultrajados com os espinhos e pedras que infligem aos que amamos.
Algo que queremos fazer porque é bom, doce...deitarmos os que amamos no nosso colo.
II
Eles...
Por quem? A quem escrevo?
Não sei... não me apetece saber.
Odeio ressuscitar as coisas que os outros querem mortas.
As coisas que para mim nunca se cobriram de terra.
Sabes porquê?
Porque o mundo volta a ruir, a queimar, a enclausurar-me e começo a ter de deixar de esperar.
Começo, realmente, a aperceber-me de que, às vezes, é mesmo preciso resignarmo-nos à sentença de culpa.
Ao invés de lhes cuspir a doença, que nesta altura lhes seria imperceptível, porque a porta se fechou.
Às vezes, é preciso ser-se maior do que nós próprios...
Mas devo dizer que é um processo complicado, aquele no qual temos de lidar com o que sabemos não ser verdade.
Lidar com a incompreensão dos que querem ver com os olhos fechados.
Lidar com as fábulas em que nos querem inserir.
Lidar com o embevecimento daqueles que nos rodeiam e, sermos suficientemente enormes, para abarcarmos o
seu estado, sem nos mostrarmos como sempre fomos.
Para não corrermos o risco de nos acharem egoístas.
Para não corrermos o risco de nos acusarem de lhes toldarmos o mundo de negro.
Tudo isto é abrasivo e corrompe-me.
Chegando ao limite de me perder cá dentro.
De já não ter respostas e não querer perguntas.
E no limite, no reflexo do espelho, não sei se sou eu vinda do casulo ou se sou o próprio casulo, podre e apático que não se deu conta de que já não existe nada para proteger ou guardar.
III
É duro sermos e representarmos tudo um dia atrás do outro.
A demência.
O cansaço.
A perda.
O ressentimento.
A raiva.
A lembrança.
A violência.
A saudade.
É a mistura incolor num corpo e numa alma que, como um cálice, aprisiona o que só pode revelar à mais bela, pura e leal divindade – que não me encontra-.
IV
Disseram que de uma certa forma me consideravam ingénua.
O dia passou, a noite veio em meu auxílio e a palavra ressuscitou na minha cabeça.
O que é ser-se ingénua?
Será esse um bocado de mim pelo qual as pessoas entram e tentam domesticar-me?
E acreditarão elas que me conhecem realmente?
Que sabem quem eu sou?
Estou cansada.
Sinto que vai ser difícil, muito difícil.
Por isso mesmo me ande a salvar constantemente.
Tentando provar a mim própria que me preocupo.
Porque na verdade estou sempre sozinha quando o corpo decide ceder e lançar-se em queda livre.
E seria demasiado deprimente ter de pedir para se aperceberem que, agora... agora é a minha vez de ser levada ao colo até ao descanso do abraço que clamo há tanto tempo...
Do refúgio que não chega.
Do colo que se afastou porque eu quero sentir que me querem deitada nele.
V
Eu gosto de flores e de quando em vez elas ficam fracas, perdem pétalas e a sua altivez esvai-se.
Nessa altura já eu tenho água a escorrer-lhes para as raízes.
A espera provoca a chegada do dia em que já só se poderá colocá-las numa jarra e assistir à sua morte.
Talvez deixa-las num livro para um dia recordar o quanto nos foram preciosas.
Às vezes é difícil confrontar as pessoas porque simplesmente elas não estão preparadas para abrir os olhos.
É como se estivéssemos em dimensões diferentes.
A culpa não é delas ou, se calhar, estou a ser demasiado ingénua...
*You woke me up.
Left me naked in a world that I don´t recognize anymore.
Who is responsible for this?
The only thing worse than evil is apathy.
A crime that we are all guilty of.
So we just walk along in silence, but now I cannot go further...
*Excerto de Echoes / Cult Of Luna