I
O quarto está escuro, silencioso e vazio.
A música soa, as texturas dela assustam-me...
Fazem com que sinta o branco da parede a descolar-se e a dançar...
Dança pelo vazio, descendo, subindo e inundando a minha cabeça.
As cortinas ondulam, pesadas... sinto-lhes o peso.
Talvez porque as janelas estejam fechadas e o ar aqui dentro esteja morto e conturbado.
A cama esta quieta, muito quietinha.
Como se o meu peso a desinspirasse.
A música continua à minha volta e por momentos tive medo... porra como tive medo!
Aquele medo que nos esfria o corpo.
Nos esfria os ossos por dentro da carne.
A carne que sentimos a latejar...
II
Tive medo e quis acender a luz para toldar o escuro mais negro dos cantos mas esqueci-me de mudar a lâmpada ontem.
Resta-me abrir um pouco a janela por entre a cortina pesada que ondula.
Estendo o braço e o coração salta, salto sem me mexer.
Salto cá dentro, dentro do meu corpo.
Assusto-me porque, sem pré-aviso, a voz rasgou por entre os acordes...
Desesperada.
Raivosa.
Como se estivesse a penar por entre o nevoeiro que deambula lá fora.
O coração foi abrandando graças à paragem brusca.
Sustive-a porque já não aguentava mais... sou fraca...
Tentei respirar bocadinhos da aragem orvalhada e densa que crescia lá fora.
Não havia luar nem estrelas.
O céu estava estéril e descolorido.
Voltei e desapertei o torniquete que a sustinha.
Soava agora um piano.
Um som pequenino que via lá ao fundo, junto à porta, com ganas de crescer.
A tinta tinha voltado a vestir as paredes de sempre.
Vi que as cortinas se tinham juntado à imobilidade da cama.
Esqueci-me de colocar flores neste quarto, esqueci-me.
Os meus olhos ainda percorrem os cantos que não querem luz.
Fechando-se com medo que a música lhes dê vida.
No entanto continuo, porque me é impossível deixar de ouvir.
III
Já não sei se estou aqui.
Continuo a sentir que não estou sozinha...
E, quando a música se engrandece do pequeno e difuso local à beira da porta, vejo-a levantar-se.
Flutua sem me deixar perceber a distância...
Abate-se sobre mim e fico inerte de corpo enquanto, cá dentro, o sangue escorre como se esperasse o golpe final.
Completamente desprotegida e com o coração aterrado.
Para lá da compreensão...
Para lá do dia...
A madrugada estende-se e coisas acontecem, brotam.