“We are like roses that have never bothered to bloom when we should have bloomed and it is as if the sun has become disgusted with waiting”.

17
Jan 10


Por isso não pensou em suicídio: existem angústias tão desoladoras, tão infinitamente cruéis, que nós temos a sensação nítida de que já passámos para além da morte, em muitos dias da vida, por coisas de bem menor importância, por mil complicações enervantes e mesquinhas, lembrámo-nos de desertar com uma bala, chegámos até a pegar no revólver.

 

Porém, em face de uma catástrofe horrível nunca admitimos a hipótese de a vermos consumada, não pensamos nem por um segundo nessa libertação. Não pensamos porque a nossa dor foi tamanha que mesmo na morte não acharíamos refúgio para ela, a nossa dor foi tamanha que realmente morremos já.

 

E como morremos já, não importa que continuemos vivos. Demais, ao peso dessa angústia, toda a nossa vontade ficou abolida. Ora, digam o que disserem, ainda é imprescindível uma grande força de vontade para desfecharmos uma pistola sobre nós próprios, para nos precipitarmos de uma ponte, para emborcarmos um frasco de veneno.


-Ah, quer dizer: Você não considera o suicídio uma covardia?

Mas de forma alguma! Acho até que um suicida é uma criatura de enorme coragem. Escusam de me interromper…

Sei muito bem que um suicida é um desertor: a existência torna-se-lhe impossível; ele fugiu-lhe. Perfeitamente. No entanto, para fugir, teve que praticar um acto muito mais violento – logo, muito mais corajoso -- do que praticaria se continuasse a viver. Se continuasse vivo, conformava-se no fim de contas com a lei comum. -- «A vida é um sofrimento eterno» -- Sujeitava-se. Mas ele não se sujeitou, morreu às suas próprias mãos – isto é: revoltou-se. Ora, meus amigos, «revolta» foi sempre sinónimo de audácia, de coragem, de energia.


Os suicidas! Ah! Com que entusiasmo os admiro, como os respeito! Eles realizaram aquilo que quiseram. Eis a sua grande superioridade. Valem bem mais do que eu, que tenho tanto desejo e nunca serei capaz de despejar um revolver sobre o meu crânio. Quem vive bocejante, lazeirento como eu vivo, e continua a viver, não é só um covarde – é um miserável.


Rogo que não vejam nisto o pessimismo oco e banal da mocidade literária. Embora de um escritor, estas palavras por acaso são sinceras: tenho vinte e dois anos, e não creio em coisa alguma; olho em volta de mim e não vejo nada que me atraia, nada que me encante, nada para que viva. Sinto, verdadeiramente sinto, que me barraram todo o corpo com uma camada de gesso muito espessa que me prende os movimentos, me aniquilosa os músculos.


Para a doença física em que a vida se me tornou, só existe um remédio: o aniquilamento. No entanto, nunca terei a força de vontade necessária para absorver esse temível elixir. Os meus amigos podem estar perfeitamente descansados. Apesar de tudo, continuarei vivendo; apesar de nada me distrair, não deixarei de frequentar teatros; apesar de não crer em coisa alguma, irei compondo mais livros, sempre mais livros, na conquista de uma vã quimera de ouro… gritando sem cessar a minha desgraça, amaldiçoando a existência, irei gozando do que nela houver de bom – como a outra gente afinal. E escrevi tudo isto…

Literatura, meus amigos, literatura…

 

In O Incesto de Mário de Sá-Carneiro

 

publicado por Ligeia Noire às 21:52

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