“We are like roses that have never bothered to bloom when we should have bloomed and it is as if the sun has become disgusted with waiting”.

17
Mai 10


Olhava para ela como um rato pequeno e mirrado.

Um bicho insignificante que pedia clemência.

Ela olhou-me do alto de si e, tremeluzente, foi-se embora.

Eu fiquei no meio da humidade da cave, à espera, a comer-me e a comer-me… talvez a mim pertencesse o condão da finitude.

Anos e mais anos cheios de dias de dor insuportável, foram-se empurrando e aglutinando em cima das minhas costas, as costas de um pobre rato de bigodes encarquilhados.

Ela voltou vestida de tudo e disse:

O teu espaço é tão grande e tu não sais do sítio!

Já não sabia rastejar, já não sabia se tinha corpo.

O corpo de um rato cheio de nada.

Eu era o que sou e eu sou o que fui.

Sempre que ela descia ao meu ninho, eu podia perceber de quanta miséria era portadora, de quantas chagas me ocupavam as patas, dos restos de pêlo que do meu corpo apodreciam.

E, desta minha indignidade, conseguia ver todo o vazio que exalava.

O vazio que ocupava, o vazio que sentia e o vazio em que vivia.

Eu era um rato esfacelado de vazio.

Um rato disforme, um rato que havia caminhado com as suas patas pequenas até à cave, que de negra era tão virgem e tão mãe.

Ela era uma coisa.

Uma coisa que me fazia arder os olhos.

Ela alcançava o meu gasto e ressequido pescoço de rato e provava-me o quão literal é "quase-morrer".

Ela dizia-me muitas coisas sem palavras… coisas que me deixavam os olhos fechados pela dor de tamanho alcance.

Ela fazia doer tudo o que ainda se escondia por debaixo daquela pele escamada de rato.

Os meus ossos mendigos e definhados ressoavam a voz dela e eu ouvia-a muito, como se toda eu fosse ouvidos.

Ela só falava coisas pequenas e raras, coisas que me faziam chorar.

Ela era tamanha.

Tão grande, que os seus braços me tocavam o coração.

Eu tinha um coração, um coração de rato pequeno, também ele mirrado e espesso.

Ela tocava-o com aquelas unhas de mármore, garras que me colhiam os gemidos.

Era um buraco a minha casa.

Eu tinha uma casa.

E essa casa, era a casa de um rato.

Quando abri os olhos pela última vez, vi-a de perto.

Tinham passados muitos anos, anos mais compridos do que aqueles outros.

Tempos sem que ela me viesse encharcar a cabeça de coisas feias.

Coisas feias que aleijam e não se esquecem, não cessam e abrasam de lâmina afiada.

E lá estava ela, vês rato pequeno, vê-la ali?

Com aquela voz que não é igual às vozes disse-me em tons de vidro:

Foste assim de bicho vestida e, vais assim de bicho que jaz com os olhos pequeninos e aguados, como quem

sempre pediu um bocadinho de pão, daqueles muito pequenos, e ficou uma vida à espera de que lhe matassem a fome.

Ela debruçou-se do alto da sua altura e pegou-lhe numa das patas, colhendo-o como se colhe um rato da cave, tão pequeno que, naquela altura de branco vidral, nem sente.

Nem sente.


publicado por Ligeia Noire às 00:19

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