“We are like roses that have never bothered to bloom when we should have bloomed and it is as if the sun has become disgusted with waiting”.

03
Fev 11


Quando tinha sete anos fiquei gravemente doente.

Humm, se calhar é por isso que sempre gostei do número sete.

Eu era uma criança dura como as pedras mas muito magra, lembro-me que adorava roupa mas não gostava de a experimentar porque tudo me ficava enorme.

Bem, a doença nunca me pareceu grave, só compreendi o grau da coisa quando a médica da minha terra me disse que tinha de ser internada de imediato e me levaram para a ambulância.

Se calhar foi por causa da escola, lembro-me que começámos a ter aulas de tarde e eu tinha de levar o almoço na mochila.

Lembro-me de que, como ia a pé, a chuva caía-me toda em cima e o meu corpo ficava com ela até ir para casa.

Nunca gostei da escola primária, era horrível porque existiam alunos mais velhos que me perseguiam, não me espancavam mas faziam brincadeiras néscias e humilhantes.

Lembro-me de preferir ficar na sala, a vir para o recreio comer o trigo com manteiga e beber o pacote de leite achocolatado.

Lembro-me de ter uma melhor amiga…

Nunca pus palavras nestas coisas mas hoje apetece-me fazê-lo.

Preciso expurgar-me e perceber-me.

Eu gostava muito dela, ficávamos tardes inteiras a imaginar o futuro e a conversar.

Ela ia muitas vezes à minha casa e gostava do meu "escritório" que era o que eu chamava à minha casa de bonecas.

Um quarto com um berço antigo e cheio de coisas, assim, pequeninas, o meu passatempo era fazer-lhes roupas e organizar e arrumar… Ah esta minha obsessão com o "arrumar", credo!

Lembro-me de que chegávamos sempre atrasadas à escola, era longe… mas acabávamos as cópias sempre antes de todos os outros meninos!

Bem, eu acabava sempre primeiro mas como a meio do texto a minha melhor amiga me pedia para esperar… eu esperava.

Como todas as meninas pequeninas eu tinha fixações pelos meus professores, havia uma, muito elegante e muito dourada, as outras eram feias e más, depois havia um professor, do qual já não me recordo o nome, que nos deixava ficar na sala e que, um dia, foi atrás de um miúdo ranhoso que me andava sempre a atormentar. Ele tinha um porte elegante e o cabelo um pouco comprido para professor primário, sempre gostei de cabelos compridos, ah pois, já sabes.

Engraçado, ainda tenho uma daquelas fotos que se tiram à classe inteira, onde estou enrolada no braço dele com um ar pequenino e protegido.

Estava eu a falar da minha doença, certo?

Pois estava, a minha doença tinha um nome complicado, bem, se calhar tinha dois nomes.

Sei que não conseguia subir um lance de escadas e mais tarde até andar me deixava exausta, dormia com a minha mãe porque o meu pai trabalhava longe.

Ela começou a achar esquisito ouvir o meu coração bater por fora das cobertas, coitado do coração estava esganado, se calhar.

E depois tinha um gato na garganta e ele miava coitado muito miava ele e, para variar, também nunca comia nada.

A minha mãe obrigava-me a ficar na mesa até comer tudo mas eu tenho um estômago diminuto.

E estava eu, frente a uma médica a chorar, porque não queria ir pró hospital e foda-se fui.

Lembro-me de estar numa sala, uma enfermaria talvez… e ter uma enfermeira, e outra enfermeira e um médico a darem-me tantas injecções que ainda hoje não percebi como aguentei sem partir os ossos e pedia-lhes, por favor, que parassem mas o cabrão não queria saber e só mandava os enfermeiros segurarem-me nos braços e nas pernas, coitados dos meus membros, eram finos como agulhas e brancos e pequeninos, ainda hoje odeio esses gajos, filhos-da-puta, aquilo doía!

Se calhar, é por isso que hoje em dia não consigo sequer medir a tensão arterial e quanto a vacinas, wow é um tormento, tenho de levar a mamã e mesmo assim é um terror.

Bem, depois despiram-me e vestiram-me um pijama ranhoso e colocaram-me a soro.

O quarto tresandava a álcool etílico e era tão branco que me fazia doer os olhos, as janelas eram altas e havia lá mais catraias, lembro-me da que estava na cama ao lado, coitada vomitava constantemente, ficámos amigas até ela ir embora.

Lembro-me de me ligarem máquinas, uma ao coração, porque a reconheço hoje, as outras não sei, e tinha o peito cheio de adesivos ligados a fios e merdas que se pareciam com pequenos alicates e coisas do género, tinha de dormir de barriga para cima, o que era temível.

A minha mãe dormia no chão do quarto enrolada num cobertor, como as outras mães.

Lembro-me de me levarem na cama para o elevador e lembro-me de estar frente a um médico e a minha mãe ter ficado no corredor.

Não sabia o que o médico me ia fazer mas lembro-me do bisturi e da anestesia, eu não senti dor mas a minha mãe disse que me ouvia a gritar no corredor, mais tarde, apercebi-me de que ele tinha feito uma pequena incisão por baixo da mama para mais tarde me enfiarem um tubo, que já no quarto anti-séptico estava ligado a outra máquina.

Através dele retiravam-me líquido dos pulmões, coitados estavam imundos.

Lembro-me de ter um monte de médicos especados e de ter vergonha de comer à frente deles (ainda hoje detesto que olhem para mim enquanto como) e lembro-me de ouvir um deles dizer "se tivesse chegado um dia mais tarde tinha morrido."

A minha mãe não podia ficar comigo todos os dias, os meus irmãos e o meu pai também precisavam dela, lembro-me de à noite ficar a olhar pela janela e chorar.

O tédio de me darem banho, levantar-me com cuidado por causa dos fios e passar um pano molhado no meu corpo pequeno, mudar lençóis, foda-se como odiava.

Lembro-me de me porem o termómetro debaixo do braço, todos os dias, e lembro-me das enfermeiras dizerem que não percebiam por que raio eu nunca tinha febre… pois.

Lembro-me de quando me tiraram a parafernália toda de cima e de eu não saber como andar, as minhas pernas estavam tão dormentes, sensação estranhíssima.

Lembro-me de não gostar de ir para a sala de leitura com os outros meninos, nunca fui muito sociável.

Gostava de levar os livros para a cama e gostava daqueles chocolates que as minhas professoras me levavam, mars.

Lembro-me de no dia de reis a gaja que tomava conta das crianças que estavam internadas, uma espécie de educadora, querer que fizéssemos e usássemos uma coroa de reis magos para andarmos em fila indiana a cantar pelo hospital.

Disse, peremptoriamente, que não queria porque achava ridículo.

Lembro-me da rapariga ao meu lado ter concordado e lembro-me de termos rido como perdidas quando vimos a procissão de miúdos pelo corredor.

Houve um dia, recordo perfeitamente, estava eu na sala de brincar quando a minha mãe disse que não podia ficar e eu comecei a chorar e disse-lhe que não fosse e lembro-me de ter levado uma chapada e de a outra senhora me ter pegado ao colo.

Que mimada e inocente era eu!

Não fazia a mínima ideia das tribulações que os meus pais estavam a passar.

Nessa noite a enfermeira acordou-me e revistou-me o corpo todo e resmungou comigo porque não encontrava o termómetro.

De manhã, quando me levaram para tomar banho, ao tirar o pijama ele caiu e partiu-se todo, bem-feito.

Quando já podia ir à casa-de-banho, lembro-me de esticar as pernas e saltar silenciosamente por cima das mães que dormiam no chão.

Lembro-me do médico barbudo e velhote e lembro-me do meu avô me levar bananas e do meu pai me levar uvas e de me ter dito que era proibido passar com uvas mas que não as viram na recepção e, de toda a fruta amontoada nas gavetas, às uvas comi-as todinhas, diz muito, não é Supremo? Eu sei.

O que será feito da minha amiga de curta duração do hospital, ainda hoje me recordo dela, não do seu rosto mas dela.

Lembro-me do dia em que finalmente tive alta, era uma festa de aniversário de um menino com diabetes, pediram-nos para ficar e comer um bocado mas só queríamos bazar, ainda provei o bolo mas era horrível.

No dia em que voltei para casa nevava muito.

Depois tive de fazer fisioterapia por muito tempo, a seca descomunal que aquilo era e eu, mimada, não queria largar a mãezinha para ir com a estranha para uma máquina de ginásio mas ela era bonita e chamava-se Maria da Conceição, diz muito não é Supremo?... e dava-me bombons e eu gostava dela.

Ela chamava-me a menina dos caracóis e eu ficava horas ali, a inspirar e a expirar e a fazer exercício e massagens torácicas etc. e tal, seca, seca e mais seca.

Ela era bonita, tinha cabelos claros e olhos claros, ou pelo menos é assim que me lembro dela.

As viagens da minha terra para o hospital eram cansativas, eu enjoava muito, então a minha mãe deitava-me no colo e eu ia assim enrolada, os motoristas eram simpáticos, às vezes não pagávamos bilhete, e quando o revisor aparecia a minha mãe deitava-me em cima da bolsa e dizia ao motorista que não me ia acordar para tirar o bilhete, o gajo chagava-a um bocado mas caía sempre.

Lembro-me do senhor de cabelo branco que me dava morangos e falava das minhas bochechas coradas que até hoje indicam o meu grau de saúde.

Ele era fixe, assim como a senhora da mercearia na cidade, a minha mãe dava-me sempre uma moeda de cem escudos e eu ia comprar um ovo kinder, ela também era fixe.

Já devem ter morrido todos.

Perdi o ano escolar mas não tinha muitas saudades de levar com os meus colegas, voltei para a escola e passei na mesma e fui a melhor mas até hoje não sei ler as horas em relógios de ponteiros, a família sempre me achou muito inteligente.

Eu acho que a minha inteligência estava e ainda está na minha percepção do que os adultos querem que façamos e de como gostam que nos comportemos.

De certa forma sempre fui óptima a agradar aos outros.

É-me fácil atingir aquilo que os outros querem.


publicado por Ligeia Noire às 16:42
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