Algures em 2005 ou seria 2006?
Prelúdio
Rapariga frente a um estirador, aula de Literatura e Interpretação de Desenho Técnico.
O Professor manda fazer um exercício.
Perspectiva dimétrica, não sei de quantos graus, de uma máquina em corte ou seria uma ferramenta?
A rapariga sentada na cadeira olha para as folhas que tem entre as mãos e vira uma ao contrário.
Desespero
Se desenhássemos esta rapariga em perspectiva dimétrica ou mesmo cavaleira, vê-la-íamos a escrever e a escrever como se estivesse a injectar heroína na veia gorda do braço esquerdo, a ânsia é a mesma, fazer com que passe, com que diminua de tamanho com que o mundo pareça menos grave.
O professor dá passos pelo meio das filas ininterruptas de estiradores e ela está ali, a tentar tirar o mostrengo de cima das costelas.
O professor estaca-se atrás dela, como um gato silencioso, põe-lhe a mão pesada no ombro.
A rapariga cora demasiado e enterra as unhas nas pernas, a vergonha era demasiada, a vergonha de não ser suficientemente normal para pedir ajuda, a vergonha de desiludir, a vergonha de não merecer o sopro, a vergonha de ser ela ali assim, com aqueles olhos mortos e aquelas mãos que nada sabiam de respostas, nem de soluções.
A vergonha de saber que ele sabia, a vergonha de saber que ele tinha pena, a vergonha era tanta que voltou a ter quinze anos e deslizou para o fundo da oficina, escondendo-se atrás de um pilar.
Eram tantas coisas acumuladas num coração que continuava a ser pequenino.
Percebi bem o que escreveste? Estás assim tão aflita?
E ela transbordou como um regato em noite de lua cheia.
Algures no começo do Mundo ou seria no teu começo?
Interior
Não sei bem quando isto começou, não sei se começou, se sempre esteve aqui, se tinha consciência de que aqui estava ou se me aconteceu alguma coisa da qual me esqueci.
Não sei falar disto e, às vezes, tenho vergonha de que me perguntem coisas do buraco negro porque sinto sempre que não há palavras que me arranjem uma boa resposta.
Às vezes, é mais simples dizer que temos uma dor num qualquer membro ou que nos falta alguém ou que tivemos um mau dia.
Não podemos desenhar-lhes estas palavras:
olha, ontem à noite adormeci de olhos enxaguados, anteontem também e creio que antes de anteontem aconteceu o mesmo.
Não podemos dizer:
houve um dia, em que não sabia como respirar, as costelas adelgaçaram o coração, o sangue escoava pelo nariz, a cabeça rodava em valsas e o medo era tão grande e tão pesado que parecia ter perdido o corpo.
Não é isso, não compreendes.
Se deixasses de ser tão obtusa…
-As minhas mãos tremem todas as manhãs, as costas doem-me e as pernas também, o estômago aperta-se e, às vezes, a cabeça deixa-me nauseada.
-Já foste ao médico?
-Não quero ir ao médico, não quero mais médicos. Esta semana o cheiro a adubo e enxofre andou sempre por ali…
-O quê? Não entendo, mas não andas na escola?
-Ando e, às vezes, não sei ler nem escrever, às vezes, sinto que nem sequer tenho opinião. Sabes, é como se já tivesse prescrito.
-Dizes coisas sem sentido, se calhar se cortasses o cabelo e aclarasses as roupas.
-E agora, Gostas mais de mim assim?
-Não. Continuas igual, os teus olhos parecem-se com os de um agarrado ao cavalo, não, não é isso, é pior, eles têm coisas lá dentro, como se... não sei, agonias-me!
-Há muitas coisas que não sabes sobre mim, há muitas coisas que tenho vergonha de contar.
-É isso! Os teus olhos, o teu corpo, é como se fizesse sempre noite nele, vês? Já me estás a contaminar com os teus ditos estranhos.
-Tens razão. Mas eu queria ser dia, eu queria amanhecer.
-Acho que sei o que tens… Acho que estás doente e… há muito, muito tempo.
-Doente? Não.
- Não? Tu estás doente.
-Os pobres nunca estão doentes. Não há meio termo, ou estão vivos ou mortos.
-Conta-me uma coisa sobre ti, quero aprender-te, deixa-me aprender-te um bocadinho hoje?
-Gosto de ver as pessoas felizes, gosto do sol delicado, gosto de gostar dos sentimentos bonitos e gosto muito de cinema de terror extremo e violento.
-Gostas de sangue?
-Não. Desmaio até, detesto. No entanto gosto de filmes pesados e pesados, como se precisasse de doses cada vez mais fortes para sair daqui.
-Mas não achas que isso te deixa ainda mais penosa e doente?
-Não sei, acho que me ajuda, acho que me amansa.
-Se calhar precisas de uma pessoa, sabes… um amante.
-Dizem que isso é importante.
-O amor é a coisa mais importante do Mundo.
-Então sou analfabeta.
-Gosto de falar contigo, não sei se é porque estás anestesiada mas tu és muito meiga, muito pequenina.
-Dizes coisas bonitas. Tu sabes da cura, não sabes?
-Sei sim.