Os meus olhos não são azuis mas às vezes assemelham-se a rios imorredouros.
As mãos são pequenas, demasiado pequenas para cobrirem todas as imperfeições, golpes, fracturas, dores ressequidas e poças insalubres que vertem dos sonhos enquanto durmo.
E conturbam-se os meus olhos e vejo a lama, o lodo e as folhas mortas, deslizarem de um lado para o outro.
É, às vezes, fico assim instantaneamente, como se fosse um saco de pó virginal que num ápice se torna em fuga eterna e dá morte ao portador.
E sozinha prossigo, já nem tu, já nem tu…
O tempo terminou-nos.
Não queria prosseguir, levantar e retomar mas as mãos tapam os lanhos e a puta mente cada vez mais.
Sabes no que te estás a tornar, certo?
Sabes que para onde estás a descer não há retorno.
Podias ter saltado.
Podias ter saltado
Podias ter saltado
Podias ter saltado.
Tu...
podias
ter
saltado, foda-se!
Mas preferiste abandonar-te ao sono, à paralisia, ao veneno.
Podias ter sido uma pessoa.
Podias ter saltado...
Sinto tanta pena de ti, perco-me na misericórdia que te sinto quando te cobres e quando te levantas tarde para obrigar a noite a prolongar-se na tua cabeça.
Perco-me de pena quando te vejo os olhos rasos a perdurarem na lareira e aqueces as mãos devagarinho, para que o tempo não saia dali e te deixe sozinha.
Sento-me e vejo-te não dormir e vejo-te chorar e vejo-te o peito a doer e as mãos a enxugarem os olhos vermelhos.
Vejo-te assim e perduras-me na memória e tanta é a pena que sinto de ti.
Nunca ousei imaginar o tanto que durarias!
E não, não minha querida, sabes que não é uma vitória.
Sabes que é apenas o amontoar, cada vez mais veloz, de pedras feias que irás ter de contar e carregar até ao vale dos indigentes.
És como aquelas espigas mirradas, aquelas cerejas verdes, aquelas formigas aleijadas, o tempo que durais é sempre tempo a mais, tempo desnecessário, tempo de vergonha.
Deveria pegar-te ao colo e baloiçar-te o corpo magoado nesta minha cadeira mas sabes... não é a mesma coisa.
É como quando tocamos o nosso rosto, ou damos a mão à nossa mão, é tecido do mesmo fabricante e os leucócitos nem sequer se aborrecem em sair dos casulos.
A soberba arte de afastar tudo (mas mesmo tudinho) e todos de vossa mercê é notável!
Às vezes nem sequer se apercebem de que já não os queres ali... de que já vestiste a armadura.
E, meu amor, assim te vejo continuar a afundares-te nas tuas estórias e nos teus comprimidos pueris que te desmamam cada vez mais da vida, até te tornares incompreensível.
Até toda tu te conseguires deglutir.
A desumana consciência, constante e negra.