VII
Gotinhas pequeninas, em flores pequeninas de arcos floridas.
Para a frente para trás, devagar, recortava a noite em duas.
-Credo, assustaste-me!
-Ah espera, isto é o teu jardim?
-Não, que idiotia.
-O que significa que também posso estar aqui mesmo que te assuste?
-Pois, parece que sim.
-És mesmo menina que ainda cora.
-Não digas?
E, ele, ficou lá, junto das flores pequeninas a enchê-las de fumo e a matar-lhes o orvalho.
Há uma ou duas noites estavam sentados frente a uma mesa redonda de carvalho, num sítio qualquer, de uma cidade qualquer, as raparigas de que falei anteriormente, um homem novo e ele.
Bebia chá e sorria quando lhe faziam perguntas, como se avisasse que nunca iria responder ou, pelo menos, não com verdades terrenas.
Esse homem que, na semana anterior tinha entrado e assustado a nossa menina, o ilustre desconhecido, como lhe chamou L.
Agora já se conheciam como pessoas que se conhecem nessas mesas e cadeiras envoltas em fumo.
Por entre conversas emaranhadas e fugas para jardins de flores pequeninas.
Em abono da verdade, ela desiludiu-se com este homem com quem tinha cruzado as escadas.
Pobre menina pequenina que está habituada a manter as pessoas afastadas para as fazer perfeitas.
Imaginava-o um senhor alto por dentro e por fora mas, se lhe perguntássemos agora qual era a sua dimensão, provavelmente diria que era do tamanho das não-responsabilidades.
Foi L que a voltou a trazer cá fora, ela que a tirou do ouriço para falar palavras como as pessoas normais mas como poderia a nossa menina ser normal no meio de homens e mulheres que falavam francês e liam livros grandes cheios de homens e livres de Deus?
Cheios de espinhos que não picam...
Esta pobre rapariga, que tem um gato selvático dentro dos olhos, já não tinha tempo para ter medo, nem paciência para ser brusca.
Ficava ali, na cadeira dura, a olhar para eles e a pensar que eram pessoas e que, até aí, nada poderia piorar.
A rapariga que tinha olhos azuis e pele de pessoa nobre que nunca se deixou acariciar demasiado pelo sol, disse:
-Falas pouco… não gostas do livro?
-Nunca o li.
-Mas devias, é delicioso, quase que te ensina o sentido de todas as coisas.
-Pois, mas eu não quero que me ensinem o sentido de nada ou não teria nascido com cinco.
-Ui que ela não fala mas morde. Disse ele, o ilustre desconhecido.
E sorriu como sorriem os sardões se o pudessem fazer, devagar e com gosto.
A rapariga de olhos azuis riu com ele.
M olhou de olhos acres e foi ver se chovia.
Ele era sempre mordaz e ela, que mordaz era frequentemente, viu-se mais rápida na agressividade e no ímpeto.
O que fazia com que o sujeito se divertisse, ainda mais, como se estivesse a jogar num qualquer casino obscuro.
Ela gostava muito do que ele escrevia… ele escrevia, e ela descobriu. Não era difícil, uma vez que era bastante considerado no meio em que se movia, toda a gente o conhecia. Era comum ver catraias de corpos produzidos a olharem-no como o aprendiz olha o mestre, se bem que talvez não quisessem aprender nada de impalpável…
Mulheres de todas as idades que se lhe conheciam como amigas, ex-amantes ou admiradoras, homens que o detestavam e outros que ansiavam por suplantá-lo, como se estivéssemos numa qualquer conquista napoleónica.
Tinha um ou dois amigos com quem o podíamos ver regularmente mas, a maior parte das vezes, ninguém sabia do seu paradeiro.
Havia histórias que se ouviam... algumas possivelmente verdadeiras, outras acrescentavam-lhe lustro à fama de insubmisso, promíscuo, arrogante, egocêntrico, sedutor e enfim, o velho cliché...
Se bem que poderia provocar ambos os estados, em ambos os sexos e em todas as idades.
Dizia-se que tinha quarenta mas poucos acreditavam, pois, a aparência abonava uma juventude controlada. Constava-se que era órfão e de que teria sido educado num mosteiro por um excêntrico monge, de onde partiu para terras estrangeiras. Consta-se, também, que seria seguidor de uma religião antiquíssima e estranha, apreciador de drogas e homem de inúmeras paixões mas nenhuma que o fizesse abandonar os pardos caminhos por onde se movia e as estranhas coisas que se dizia fazer.
Conviveu com hippies, punks e todos os que se lhe seguiram, viu morrerem-lhe amigos e nunca conheceu familiares.
Educado e extremamente inteligente, tinha como profissão conhecida qualquer coisa que envolvia línguas, mas os mais novos e recentes no meio chamavam-lhe libertino.
Não era simpático, nem condescendente, nem emotivo, nem presente.
Às vezes, ia beber uma cerveja ou um café e fumar um cigarro ao bar do costume mas ficava na mesa redonda de carvalho a ouvir os conhecidos falarem das últimas façanhas do governo ou das novas tendências literárias, como se aquilo não fosse problema dele, como se depois de sair dali fosse para o mundo ao lado.
Raramente se irritava e, era tão subtilmente mordaz com os moços que o abordavam que só ele se ria.
Era toda esta a fama de que a rapariga de quem aqui se conta a história ouviu falar e à qual ela própria acrescentou uns pozinhos ao ler-lhe os escritos. Um dândi que se perdeu da plêiade libertina e vivia por ali…
No entanto, mesmo tendo conhecido o sujeito ignorante do seu rol de propriedades, aos olhos de uns, admiráveis e aos de outros, pouco ortodoxas, já o achava mais um que demandava coroa e joelho no chão.
Ele era como aqueles cogumelos venenosos que só de aparência nos abatem as defesas… Os cabelos castanho-avermelhados, como se a lava violasse a terra, olhos verdes que contavam tudo mas em língua desconhecida, lábios rosados, como se de uma mulher se tratasse, rosto claro e barba de mosqueteiro, porte de cavalheiro que fica bem a cavalo, unhas ligeiramente compridas e nuas, sempre de negro e sempre de botas.
Foi esta a figura que ela viu nas escadas e de quem fez o esquisso na cabeça (mas esqueceu-se de que nunca soube desenhar, falta-lhe o engenho e a arte).
Ela não gostava muito de ir à taberna mas como L trabalhava lá, poupar e regressar a casa era mais fácil e, claro, a música era quase sempre melhor que as demais doçarias.
-Olá, logo vou buscar-te ou vens cá ter?
-Quê? Eu tenho mais que fazer, não vou para aí ouvir as palestras daqueles gajos, fico bem em casa.
-Estás a falar a sério? Vais perder o concerto? Só lá foste duas vezes e nunca mais lá apareceste e eles não estão lá todos os fins-de-semana, aliás, o gajo raramente aparece, tu é que tiveste azar nos dias em que foste… se bem que não percebo… ele é extremamente educado… vá anda…
-Ó, eu não estou a limitar nada por causa deles é só que... tu sabes... és responsável ali, não te quero atrapalhar e eles convidam-me para me sentar e eu não vou dizer que não e ficar ao balcão junto dos "pescadores" mas, depois, sinto-me desconfortável e ridícula, sei lá…
-Deixa de ser adolescente revoltada e anda, bebes uns copos e se não curtires o ambiente podes bazar e ficas na minha casa que é mais perto.
-Ó, está bem… sou tão fácil de convencer...
-Isso, jantamos juntas. Ao entardecer apareço aí.
"Uma rapariga tão crescida e sempre cheia de reticências", pensava ao pousar o telemóvel, enquanto olhava da janela para um gato a atravessar a rua e a subir a um muro... "Se queres vais e o resto não interessa, se fosses ainda uma adolescente revoltada como ela disse, seria muito mais fácil, já que eles não pensam demasiado."
Ao chegar ao carro da amiga, era visível que tinha deixado a sua acidez mais na alma do que no corpo, a sua indumentaria estava mais acetinada e a vontade mais premente.
Esta noite seria concorrida, o conhecido grupo neoclássico francês iria dar um concerto e seria mais do que certo que a taberna iria encher.
Enquanto a amiga foi para a sala ao lado, M sentou-se nas filas do meio, os violinos deram entrada, logo seguidos do piano e do violoncelo, a música ecoava pelas mesas redondas e pelas cadeiras agrestes. Não havia barulho algum, todos estavam serenos e atentos como se ali se estivesse a consagrar a ceia primordial.
No final, todos se levantaram e pediram encore, ao que a porta-voz do quinteto acedeu de modo sorridente, desde a Tocata e fuga, à Enjoy the silence, todos se deleitaram com as novas formas que o som ia tomando nos seus sentidos e, assim, se passou uma hora e meia.
A amiga ficou a conversar com a rapariga do violino e a nossa menina foi para o jardim sentar-se no baloiço do costume.
Para a frente para trás, devagar recortava a noite em duas, fechou os olhos.
"A música é a coisa mais bela do mundo, a seguir às flores", pensava ela mas as flores não cheiram a tabaco e tabaco era o perfume que lhe ia caindo no nariz.
Quando acordou viu que o gajo estava sentado no muro de pernas cruzadas, o casaco estava no banco de pedra e os olhos no movimento lá ao fundo.
Ela não disse nada mas ficou assustada por não o ter ouvido e se fosse um assaltante? Podia ter-lhe delapidado a garganta antes que pudesse dizer um ai que fosse.
-Pensei que a cidade grande tinha assustado a menina de vez…
-parece que ainda não, mas vai mantendo as esperanças.
-Sempre. Então, não era para já teres ido embora, como se fosses demasiado especial e rebelde.
-É por isso que estou cá fora. Bem, na verdade estou a ouvir o pior dos enfatuados mas não se pode ter tudo…
-Menina, moça espirituosa, já vi que me deram a conhecer a vossa senhoria em livro aberto, tão gentis estas criaturas! Jogo injusto, mal sabem os demais que a pior das egocêntricas gosta de flores e anda de baloiço, mas não faz fama e assim nada se sabe dela.
-Não há nada para saber.
-Ah pois, é isso, desde que nasceste, o teu quadro permanece em branco, deve ser triste não o ter tingido de sangue de batalhas ou do dourado do prazer.
-É assim que consegues com que as meninas bem vestidas ali dentro se ajoelhem perante a tua divina majestade?
- Exactamente. Uma vez que sabes tudo sobre mim, deverias elucidar-me, a minha mente já não é o que era.
-Pois, se calhar é isso que te move.
-Ó minha cara, poderia ter a amabilidade de continuar este joguinho de quem quer foder quem mas já não tenho paciência, talvez aches que fazes parte de um qualquer conto desses teus lúgubres escritores, em que o revolucionário e belo cavaleiro se deixa dominar pela inocente e doce donzela, mas nem tu és doce ou inocente ou sequer fazes o meu género e nem eu tenho paciência para me rebelar ou para andar a cavalo… se quiser fodas ei-las, e não preciso de inventar conversas amanteigadas, não sou dramaturgo e detesto novelas.
Aqui não há belezas, nem floreados, cada um vive a vida como pode e tu, com certeza, já tens idade e discernimento suficientes para usar de sensatez naquilo que te dizem e naquilo que pensas ser verdade e, agora, sê uma menina bonita e vai a correr para casa escrever um poema triste e magoado contra o mundo que não te compreende.
Dito isto acabou o cigarro e fez aquele seu olhar de língua estrangeira acompanhado pelo sorriso de sardão, ficando a olhar para ela.
O rosto da rapariga corou demasiado e a verdade é que foi mesmo embora, não a correr e não porque não lhe quisesse dar uma chapada ou gritar-lhe de que não era assim mas porque estava triste e lhe apetecia chorar.
"Filho da puta trinta vezes sete!
Nunca lhe disse nada de especial, apenas reajo ao sarcasmo e à forma desdenhosa com que ele me trata.
Bem, se calhar sou mesmo assim… é isso, sou uma idiota que ainda pensa que pode mudar o mundo, sou ainda mais triste do que aquelas gaiatas espartilhadas em demasia e de lábios vermelhos que se bamboleiam no átrio".
O cavalheiro ficou ainda um bom bocado a olhar para o vazio e a acabar o segundo cigarro.
Depois, como se tivesse chegado ali apenas há um instante, foi cumprimentar os conhecidos e ficou a conversar, alegremente, com uma mulher de franja negra.
Se desta vez a menina foi cheia de vontade de olhar o mundo de frente e de escapar um bocado à realidade, o tiro saiu-lhe pela culatra.
Foi a realidade que se lhe desaguou olhos adentro.
Esta rapariga à espera de um anti-herói para lhe conquistar a alma parece uma história bem bonita mas é pena que sobre ela também não haja rumores, ou saber-se-ia que não é mais do que um farrapo feio e bolorento, cheio de alvéolos e vermes com os quais já se habituou a conviver.