“We are like roses that have never bothered to bloom when we should have bloomed and it is as if the sun has become disgusted with waiting”.

28
Nov 11


-Se não gostas que leiam o que escreves, por que o fazes?

-Não disse que não gostava, só não quero saber, não preciso de o saber porque não o faço para os outros, faço-o por necessidade.

-Pois mas há sempre quem leia.

-Um dia li que isto era, mais ou menos, como escrever e deixar o caderno esquecido em cima de um qualquer banco de jardim depois, alguém pegaria leria e deixá-lo-ia no mesmo sítio, para voltar a ser escrito.

-Compreendo.

Não me importo, assim como assim, pouco lhes há-de interessar e pouco iriam compreender.

Às vezes, arrependo-me de ter aberto algumas janelas, deliberadamente, mas o que está feito está feito.

É como o prazer pelo prazer, não há a vontade de se querer conhecer quem está ali.

Não quero conhecer.

Quero viver no meu mundo, quero olhar para as pessoas como se fosse uma eterna viajante, apenas olhares, cruzares de caminhos, sem palavras, sem violações de linha vermelha, apenas e só, vultos difusos e nevoeirentos, nada mais.

Hoje foi um dia de muito cansaço, hoje foi um dia de demasiado cansaço.

Amanhã, o cansaço será demasiado e depois e depois e ainda depois, até que eu envelheça mais e mais, até não conseguir colocar a domino.

Estou triste, assim triste e frágil e não sei, não sei.

Nada faz sentido, tantas lombadas de livros, tantas pessoas que me cruzaram o caminho, tantos dias que cresceram desmedidos, tantas horas por dormir, tanto e um tanto mais de coisas que não fazem sentido, que não me fazem sentir melhor.

Eu, eu, e eu queria só ser.

Queria seguir um caminho direito e parar ao final dele, não queria ter estes olhos que olham para as pedras minúsculas e para os ramos secos, queria apenas ver o caminho à minha frente e andar.

Queria querer ter um futuro, queria querer ser alguém, queria querer casar, queria querer ter filhos, queria conseguir amar, queria ser aquilo que não posso, não há metáforas, não posso.

Queria que a paranóia, o pânico, o medo, a dissidência, a violência, o abismo e a queda, cessassem.

Queria que tivesses mãos para que pudesse saltar, queria sonhar com as gotas das tuas lágrimas a caírem-me nos olhos e, assim, saberia que nunca foste embora.

O que é que eu faço agora?

Queria ir e não posso.

Estou tão cansada Supremo, estou tão cansada e tu não vês que sou apenas uma criança pequena, nunca deixei de ser a menina dos caracóis que chorava virada para a janela do quarto anti-séptico.

Nunca deixei de ser a rapariga que achava que tinhas mãos como regaços onde me podia sentar e baloiçar.

Nunca deixei de pensar que, haveria uma noite, apenas e só uma, em que abriria os olhos e deixaria de pairar.

Quando chove muito, quando o vento se zanga muito é quando te sinto mais perto, é quando sinto que faço parte daqui, que as coisas me pertencem também.

E tu estarás do lado de fora da janela a pedir permissão para entrar, como os vampiros velhos.

Hoje estou realmente desfolhada, tal como naqueles dias em que me fechava no quarto branco com líquidos transparentes.

Aquando da minha meninice, tinha um quarto pequeno onde passava horas a fazer de conta.

Tinha muitas bonecas e gostava de sobremaneira de as vestir, invejava-as tanto, tanto quanto aquela gata branca, tanto quanto aquela rapariga alta de pulsos finos.

A rapariga.

É a sensação de que algo pode atingir um tão grave grau de beleza que tu não consegues suster, que tu não consegues suportar sequer.

É uma vontade imensa de as possuir, de as ter numa caixinha de laço branco.

As flores são as mais altivas, pensas tê-las para ti assim que as colhes mas morrem-te nas mãos.

Houve um episódio de uma série no qual uma mulher tinha uma obsessão pela princesaSissi, deixou crescer os cabelos e vivia uma vida paralela àquela que o mundo lhe conhecia.

Assim que chegava a casa, abria a porta de um quarto secreto e vestia longos vestidos, soltava os cabelos e colocava-lhes pérolas.

Um dia, até chegou a deixar-se ficar para trás numa visita turística, só para poder dormir na mesma cama.

Gosto muito de bonecas, daquelas que parecem sempre tristes.

Era assim aquela rapariga do estabelecimento.

Nos seus jeans clássicos, blusa branca e casaco de lã, cabelos castanhos lisos e pulsos finos.

Mal ela sabia que eu ficava longos minutos a admirar a forma como se mexia e como pegava nos papéis.

Era disso que mais gostava, de ver as mãos finas e brancas a dançarem, enquanto eu fingia estar no planeta ao lado.

Um dia, trouxe o cabelo apanhado com um belo gancho e a dona do estabelecimento disse-lhe que ficava melhor de cabelos soltos.

Gostava de lhe ter dito: "não a ouças, as flores mais belas, são as que ainda nem sequer desabrocharam."

E gostava que ela tivesse sorrido.

Às vezes, penso se não lho terei dito?

Não me lembro, é tudo tão nebuloso, é tudo tão mutável.

Nunca mais lá fui, nunca mais a vi.


publicado por Ligeia Noire às 21:58
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22
Nov 11

 

I

 

Gosto de me sentar ao sol quando tenho o sangue frio.

Gosto de senti-lo a acarinhar-me os olhos e a encher-me os dedos, afinal também sou filha Dele.

Não é da minha boca que estão a prosperar mentiras como ervas daninhas, é das vossas.

Todo o mistério de que me julgam refém, é do meu silêncio procedente. 

Sempre achei que os outros se aborreciam com frases mortas.

E estou ali, à frente deles e eles enrolam bolinhas de lã na língua e adubam e adubam falácias e falsas preocupações.

Dizem-me arredada dos outros, eu prefiro descrever-me como a assistência.

Fora do meu habitat, mexer-me é um perigo!

São quantidades industriais de pessoas, de sachola às costas, a cavar buracos, infelizmente, não para si.

  

II

 

Não sou vegetariana, vou comendo o que há.

Hoje, numa aulinha foi dito que o facto de os asiáticos paparem canídeos era repugnante, e eu, melosa de tão acriançada, perguntei:

"Não percebo, qual é a diferença entre um cão e uma vaca?" 

E foi-me respondido que o primeiro bicho mora connosco e há uma afinidade lógica que advém da convivência.

Repliquei então:

"pois, é que os meus papás tinham vacas e eu gostava muito delas."

Ora bem, também nunca entendi os citadinos que se julgam acima dos hominívoros porque defendem os

direitos dos bichos mas nunca os levaram a rapar erva... é assim como aqueles comunistas fofinhos que nunca

trabalharam numa fábrica…

Não preciso de advogar os direitos de ninguém, é a lei do mais forte, e como fatalista que sou, estaria a

mentir se dissesse que gostaria de ser vegetariana.

Gosto de carne mas não gosto do sofrimento pelo qual os bichos têm de passar para encherem o nosso prato,

e logo eu, que sou adepta de carnes frias, enchidos e por aí fora.

E, realmente, agora que penso nisso, a harmonia e a paz mundial são mesmo palavritas engraçadas, digo, ridículas!

Se encaixamos uma vaca numa jaula, em que nem um bezerro engrunhado caberia e depois a esventrámos e arrastámos do próprio sangue para... eh pá soa-me que querer tal coisa é um pouco contraditório.

Bem, não continuei o diálogo porque a pessoa em questão não me acha fofinha e eu, um doce de menina, prefiro guardar-me de altercações.

Aqui, é considerado moralmente incorrecto um cão ser papado, uma vez que é um bicho que se tem por casa e também o melhor amigo do Homem.

Ora bem, vaquita, estás fodida, ou começas a copiar a tua conterrânea do anúncio, ou vais continuar sendo

trinchada em mesas alheias.

Lá estamos nós com as pirâmides, já o outro achava que os judeus estavam no degrau abaixo, e a humanidade inteira, há uns séculos, achava o mesmo dos pretos e das mulheres, e etc. e tal.

Não gosto de grupos, não gosto de seguir, não gosto de filas, não gosto do "ser-se ()", daí não usar camisolas com logos de bandas, limita-me.

Ser-se feminista, vegetariano, ateu, cristão, comunista.

Esta mania das gavetas que só dá jeito com os CD e todos os objectos quejandos.

Como se a seres isto, tivesses um degrau só para ti, como se fizesses sentido, como se fizesses a diferença, quando esta não pode ser feita, uma vez que, somos todos a mesma escumalha.

Morremos todos sozinhos.

Morremos todos e sozinhos.

 

III

 

As vossas boquinhas são úteros cálidos de mentiras.

E falam-me assim, naquela tonalidade amenizada e eu de domino assente rio-me toda.

Às vezes magoa, como no teu caso flor-selvagem, porque ontem quando o fiz…. É que… de repente acordei e os meus pés estavam a calcar o azulejo gelado de um curral e um homem grande empunhava um ferro em brasa e cinzelou-me a testa.

Néscia, pobre néscia sou.

De resto, todo o resto que vou conhecendo por esses prados verdejantes e luzidios vai atestando a minha natureza de arredia.

Seu bando de mentirosos!

Sua corja de coisas pequenas e rompidas.

Têm-me por desprezível e violenta mas, pelo menos, na minha boca não se trocam as águas.

Bem, não foi por falta de aviso, a senhora de negro um dia disse que tínhamos de seguir o instinto dos gatos e não esperar nada de ninguém.

Por falar em gatos, o meu cão velho, o meu Roberto, foi embora para sempre e nem tive tempo de me despedir...

Como disse à manhosa da minha avó no Sábado, prefiro mil vezes animais, mil vezes animais, eles são o que são, não perdem tempo com coisas inúteis.

Não acham que dá muito trabalho?

É claro que não granjeamos muitos afectos mas também nunca gostei de amanteigados.


publicado por Ligeia Noire às 20:50
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16
Nov 11


Por isso preparai-vos majestade.

Quero sugar-vos o sangue pelos dedos.

Quero abranger o vosso pescoço cálido nas mãos.

Cravar as unhas de leite nos vossos cabelos.

Quero tudo e não ter de voltar à vossa companhia, jamais!

Quero beber-vos a integridade e possuir o amor que tendes por mim.

Perdoai-me alteza, mas se não me é permitido encontrar quem me saiba navegar os olhos, navegarei aqueles que de mim esperarem predilecção, até o barco rasgar o casco no fundo do mar. 

Cerrai os vossos lábios, não vos quero ouvir, já vos sei de cor.

Indolente e detestável, é verdade sou toda assim majestade mas escutai, não quero palavras, nem ternuras, dai-me receptáculos e deleite. 

 

Tempted white eyes
Blinded by the night
Hollow like the towers 
On the inside
Laura's a machine, she's burning insane
Laura's a machine

For a menace in disguise behold this night
Four walls are furnished now she's alive

No one ever helped poor Laura
No one ever helped poor Laura
She's rabid in ecstasy
She's rabid in ecstasy
She's rabid in ecstasy
She's rabid in ecstasy

She's on the line to cut it all
She's on the line to drop and fall
She's on the line to cut or fall
She's on the line
Line to fall

People laughing, an awful sight
Please leave Laura
'Tis her night
Laura can you see?
Laura can you say?
Laura can you see?
From the light of the Catherine wheel 
She spins from above
Haunted by these times
My European love

No one ever helped poor Laura
No one ever helped poor Laura
She's rabid in ecstasy
She's rabid in ecstasy
She's rabid in ecstasy
She's rabid in ecstasy

She's on the line to cut it all
She's on the line to drop and fall
She's on the line to cut or fall
She's on the line
Line to fall

 

Laura da autoria dos Fields of the Nephilim/Laura by Fields of the Nephilim

publicado por Ligeia Noire às 19:41

 


Hoje, percebi que nunca vou ter quem me saiba navegar os olhos.


Os quem fora do amor de sangue me tocaram o coração, durante anos, são agora momentos no tempo,


percorremos caminhos distintos, o caminho que eles escolheram já não os deixa verem-me.


As coisas que me atingem são agora coisas difusas para os seus sentidos.


Gostei das pessoas que eles eram.


Todos os outros não passaram de desapontamentos.


Alguns, em dias, já me não diziam nada, os outros, os outros, confesso ter querido com muita força que me fossem alguma coisa, que fizessem sentido mas não foram precisos muitos meses para lhes ver a distância nos olhos.


Não gosto deles.


É assim.


E chego agora, aqui, a este planalto e sinto o vento nas pernas e a mão esquerda a doer-me e dormente, não sei.


Sinto a mesma vontade de chorar e tenho medo que as costelas se adelgacem e não me deixem respirar.


Não choro, tenho medo.


E vejo tudo e tudo me faz querer chorar, como se presenciasse o mundo acorcovado e cheio de buracos,


num coração muito grande, o qual não me cabe nas mãos, a caminhar e a caminhar e quanto mais o mundo caminha, mais lanhos e feridas lhe nascem na casca.


Vejo tudo isto moribundo, negro, aleijado, esfomeado, rasgado, com fome e sem pai, ou mãe que lhes possa


agarrar a mão e ajudar a atravessar o rio das almas que é feito de breu.


É tudo tão fundo, tão negro, tão escarpado e precipitado e sinto náuseas e vertigens e medo, muito medo.


Sei.


Sei Supremo, ah sei...


Chego aqui, onde a queda impera, e vejo-me isolada.


Tantas vezes disse todas estas palavras, tantas vezes disse todas estas palavras em ordens diferentes, com intensidades diferentes, em caixinhas diferentes mas todo este amontoado de coisas que urgia ser cuspido, nada mais foi, é, e será, sempre, espelhos e mais espelhos do que jamais conseguirei atravessar.


Estou cansada, estou cansada lê, tu.


Lê.


Cansada de que falem e eu não sinta nada.


Cansada de querer não ser e, principalmente, não sentir.

publicado por Ligeia Noire às 00:42
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13
Nov 11

 

I

 

Sabes o que sucedeu às filhas dos Homens que foram adentradas pelos Caídos?

Flor-selvagem, alcunha delicada que por mim te foi imposta, ah que infantil me saí.

Se pudesse esconder-me de ti, para não teres de te esconder de mim, fá-lo-ia de bom grado.

És mortal afinal, apenas e só um mortal que judia os céus mas que inveja as mãos quentes dos querubins.

Serviste apenas de inspiração, foi o que nunca te disse e que tu jamais foste capaz de perceber.

Serias completamente incapaz de me conter, não chegaste sequer perto do espelho onde miro os olhos.

Nunca cravaste as unhas nas conchas das minhas mãos e duraste o tempo que quis.

Se tive os olhos fechados, lê bem meu anjo, foi porque a anestesia se propalava nos capilares.

Seria tua serva, se tivesses o poder de me laçar os cabelos e silenciar os ruídos da minha filha negra.

Seria, pois, tua vítima meu amor, a teu bel-prazer.

Juro, que até conseguiste com que durasse um bocadinho.

Todo este tempo em que acreditei na possibilidade foi, como sempre, porque sua excelência estava suficientemente incógnita e distante para que eu pudesse criá-la à minha mercê.

Cheio de rendilhados e beijos labirínticos, gostei.

Mas a maçã vermelha caiu sem que a visse, e calquei a dita em cheio.

Tais foram os barulhos que a pobre derramava, que tive de baixar o rosto para com larvas guinchantes, de abdómens rompidos e de corpos agonizantes me confrontar.

A algibeira consultei e lá tive de macular o meu mais belo lenço branco, na árdua tarefa de limpar os sapatinhos.

Agora, que prossigo no caminho, reparo na proximidade da escadaria industrial e no alçapão que me levará ao nada, ao génesis.

 

II

In that house
there is no time for Compassion,
there is only time for Confession
and on his dying bed they asked him:

Do you confess? Do you confess?

And on his dying bed the dirty angels
flying over him like buzzards asked him,
Do you confess? Do you confess?

shshshshsh
It's so cold
It's so cold
shshshshs
It's so cold
It's so cold
Do you confess?
Do you confess?

Who are you?
Who are you?

Do you confess?
Do you confess?

Yes, I confess
Yes, I confess
When they laugh at the trial of the innocent
Yes, I confess
Let them laugh at the trial of the innocent
Swing swing
Let them laugh at the trial of the innocent
saying, "Here's the rope
and there's the ladder,"
Coming for to carry me home.
Yes, I confess

[tongues]

Yes, I confess
angels! angels!

[tongues]

Yes, I confess
Yes, I confess
Yes, I confess:

Give me sodomy or give me death!
 

 

 

lyrics by Diamanda Galás/Letra da autoria de Diamanda Galás


publicado por Ligeia Noire às 00:40

11
Nov 11

 

Esta noite, voltei aos pesadelos, acordei de madrugada aterrorizada com a vívida imagem em todos os meus neurónios.

No entanto, apenas consigo recordar a segunda situação.

Como é óbvio, não vou escrever sobre isto, até porque sei que me seria impossível codificar as imagens em palavras e, tambémporque há coisas que não valem a pena serem escritas.

Nada daquilo se parecia com o colo branco que te pedi.

publicado por Ligeia Noire às 19:28
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10
Nov 11


Quero ir para casa, quero mesmo muito ir para casa.

O bem que me faz estar, simplesmente, sentada à lareira com a gata ao colo e os gatos a subirem pelas pernas da mesa.

Não ter espaço para me chorar, para poder agasalhar-me, é, simplesmente, desumano.

Já não me reconheço, começo a achar que comporto toda a gente porque na realidade não gosto de ninguém.

Quero abrir os ouriços verdes com os meus sapatos velhos e guardar as castanhas nos bolsos da minha mãe.

Quero estar nas caleiras, a aquecer o sangue ao sol da manhã e ver surgir o corpo velho do meu cão preto.

Quero ir para casa pai, quero ir para a minha casa velha de pedra, comer santieiros.

Hoje não há pele, carne, ou costelas que me protejam o coração.

Abro a camisa branca ao espelho e coloco-o na pedra de mármore, na pedra gelada.

Pobre coisa mirrada… anda vê-lo Supremo, desce e chora-o comigo.

Não tenho nada que seja teu comigo, sabes que gostaria de ter aquele rosário de prata fechado na mão para poder voltar a sonhar contigo.

Sinto que já não estás aqui, que foste embora e tenho medo, tenho saudades de subir para o teu colo branco.

À noite, quando chove e o vento sibila, é como se o rosário se materializasse e eu te sentisse à janela, pedindo permissão como os vampiros antigos.

Ser esta versão de mim arruína-me

Quando é que me levas contigo?  

publicado por Ligeia Noire às 22:06

07
Nov 11


Eu queria ser mulher para me poder estender

Ao lado dos meus amigos, nas «banquettes» dos cafés.

Eu queria ser mulher para poder estender

Pó-de-arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés.

 

Eu queria ser mulher para não ter que pensar na vida

E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro -

Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro

A falar de modas e a fazer «potins» - muito entretida.

 

Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios

e aguçá-los ao espelho, antes de me deitar -

Eu queria ser mulher para que me fossem bem estes enleios

que um homem, francamente, não se podem desculpar.


Eu queria ser mulher para ter muitos amantes

e enganá-los a todos - mesmo ao predilecto -

Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto,

com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...

 

Eu queria ser mulher para excitar quem me olhasse,

Eu queria ser mulher para me poder recusar...

 

Da autoria de Mário de Sá-Carneiro


publicado por Ligeia Noire às 20:17

02
Nov 11


Em circunstâncias normais, isto seria impossível, ainda não te teria concedido existência para que Ele te pudesse mimosear os pulmões.

Serias assim... como que capaz de ler tudo isto de uma assentada.

No passado, não oferecia as minhas contendas a brinquedos.

Se te controlares verás que é praticável tomar conta do asco e olhar-me com calma.

Se parasses, se não toldasses os olhos de cada vez que te nasço no horizonte, talvez te apercebesses de que também tenho claridade e doçura, de que os meus traços não são assim tão crespos e virulentos.

Entristecesses-me, entristecesses-me aos bocados e coisa criada não pode tomar o lugar do criador.

Digo que me toldas o sorriso, apenas e só, não me constringes, não me avassalas, nem sequer possuis a virtude de me enlaçar o pescoço.

Não são os teus olhos nublados ou o teu corpo de recuo que me atemorizam, eu não agonizo na tua supremacia, nesse teu reino de pessoas livres, vestidas de coisas por acontecer e de mãos abertas, tens razão eu não caibo, nem me consigno.

Interessavam-me os teus olhos, interessa-me, ainda, a tua beleza ruiva mas não consegui conter-te um instante que fosse.

Ele, porventura, sabe de que me enganei, tu ainda não sabes falar e eu não consigo abrir a boca.

Não foste escolhido com base em cálculos e teorizações, não sabia se o teu corpo e as tuas entranhas se moldariam ao meu esboço mas sabia que a nebulosidade dos teus olhos era perfeita para que pudesse, finalmente, testar a escada industrial.

O espaço que via preenchido sempre que não te abrigavas da chuva, era o que me movia a curiosidade experimental e visceral para que deixasse escorrer das palmas das minhas mãos, fios de seda nipónicos capazes de te anestesiarem o coração.

Falhei, admito e lamento mas tudo isto não pode prosseguir sem que me dês permissão, se não me ajudares, se não engolires o meu fermentado sopro de vida, não posso deixar que te nasças de mim.

Sentar-me-ei junto à lareira e desabotoarei as mangas para que possa fechar o ventre venenoso que te criou e te conduziu a este mundo de bocados e esquinas sempre escuras e sempre aguçadas.

Se não queres, se não gostas, se te repugno, não há nada em mim, ou ao alcance das minhas mãos, ainda estéreis, que te possa volver no passadiço.

Peço, pois, que não me cruzes mais o caminho

publicado por Ligeia Noire às 21:35

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