Sabes, sinto-me como a Justine quando se deu conta de que o Melancolia ia destruir a Terra, confortada,
calma, entendida, preparada para a liberdade quando leio Bukowski.
Gosto da palavra melancolia, gosto das letras que a compõem, gosto do som, do significado, da música que
expele…
Revi o filme, como é claro para ti, não sei se fale agora dele, se o misture com o que queria dizer, se mencione o que é importante ou se me cale.
Mas só vejo a Justine no seu vestido branco de devaneio, de felicidade para sempre, de véu incauto e ramo de
pureza, as mamas abastadas e os olhos doentes, se pensar no filme é esta a imagem que me perpassa pelas
pálpebras fechadas, um mundo lá em baixo, com pessoas e mesas e coisas a acontecerem e esta rapariga branca a caminhar perdida pelo labirinto, até perder o vestido, as flores e se sentar a um canto sem querer mais levantar-se.
Pain is strange.
A cat killing a bird, a car accident, a fire.... Pain arrives, BANG, and there it is, it sits on you.
It's real.
And to anybody watching, you look foolish.
Like you've suddenly become an idiot.
There's no cure for it unless you know somebody who understands how you feel, and knows how to help.
(Charles Bukowski)
Haveria tantas coisas lineares para serem ditas.
Direi algumas.
A primeira vez que vi o filme achei que seria uma perda de tempo, um aborrecimento intelectual de menino
riquinho que não sabe o que é ter fome e não ter tempo ou dinheiro para depressões e, na realidade, a
primeira parte não deixou de me causar sarna.
It was true that I didn’t have much ambition, but there ought to be a place for people without ambition, I mean a better place than the one usually reserved. How in the hell could a man enjoy being awakened at 6:30 a.m. by an alarm clock, leap out of bed, dress, force-feed, shit, piss, brush teeth and hair, and fight traffic to
get to a place where essentially you made lots of money for somebody else and were asked to be grateful for
the opportunity to do so? (Charles Bukowski)
Afinal por que raio está a Justine tão deprimida?
Talvez a Claire tivesse maiores motivos para não querer acordar, talvez a Claire me assustasse mais enquanto
a Justine me inspirasse compaixão.
Se te iniciares no filme sem nenhum tipo de informação, exceptuando o prólogo, o que vês para além da
limousine com os noivos?
Não me parece felicidade mascarada, parece-me riso genuíno e vontade de seguir, há pois o simbolismo da
grande máquina branca que não consegue avançar naquele carreiro curvilíneo, a metáfora da manifesta
aberração, do elefante na loja de cristais, diria.
Mas sem saberes nada mais, não podes dizer que ela esteja a fingir sorrisos… apenas com o decorrer da festa
te vais apercebendo do miolo e mesmo depois do miolo percebido a felicidade inicial continua a afigurar-se
genuína, talvez indicando que é a intrusão do externo, da família e das concupiscências sociais a causa da melancolia, do cansaço.
Bem, mas ia dizendo que a Justine é uma privilegiada, dá-se ao luxo de fretar uma festa milionária, de se
armar em presunçosa e, mesmo depois do atraso imenso, ir visitar o cavalo.
Diria qualquer um que, estando a doença já num estádio de severidade ou mesmo de catatonia, nada interessa.
O cunhado é descrito como o sovina e materialista do pedaço mas, na verdade, seria um pouco chato gastar
tanto dinheiro e ver a princesinha passarinhando com ar de frete e de obrigação, ora pois, dissesse que não.
A Justine pode dar-se ao luxo de não querer comer, vestir-se ou sequer andar e tem a irmã a cuidar dela, a servir-lhe de gradeamento berçal, Claire que se me afigura tão ou mais deprimida que Justine, não pode e não tem.
Claire é descrita como agarrada às convenções sociais e quejandos mas o que vejo é uma mulher que também
não as suporta, que não tem alternativa, que atura todas as situações e que não tem quem olhe para dentro dela, já Justine dá-se ao luxo de desprezar e de se rebelar contra o que acha ser a ambição desmedida do chefe, a frieza da mãe, a desatenção e irresponsabilidade do pai, dá-se ao luxo de poder não fingir, de cair e ficar caída.
O difícil não é cair, chorar, não se mexer, largar a mão da sacada, difícil é ficarmos agarrados, chorar sem
provas, ficarmos quietinhos e termos de engolir em seco e calçar os sapatos.
I was naturally a loner, content just to live with a woman, eat with her, sleep with her, walk down the street
with her. I didn't want conversation, or to go anywhere except the racetrack or the boxing matches. I didn't
understand TV. I felt foolish paying money to go into a movie theatre and sit with other people to share their
emotions. Parties sickened me. I hated the game-playing, the dirty play, the flirting, the amateur drunks, the
bores. (Charles Bukowski)
Mas eu não detesto a Justine, eu gosto da Justine, eu não sei por que está a Justine doente, isto é, mais do que as pistas que são dadas mas posso usar de muitas miradas e escolher as que quiser e as que escolhi foram as induzidas pelo argumento, um pai que se desresponsabiliza de ser pai (a tal treta de se ser adolescente para sempre) ora bem se se quer continuar a foder, beber, dançar, sair sem dar um ai aos que ficam, então não cases e não procries, sempre fui apologista da salvação na destruição mas individual, sempre, sem danos colaterais porque senão perde toda a validade.
Uma mãe que se mostra intencionalmente fria, dorida e fracassada.
Em suma, o que aconteceu a esta mãe, é o que acontece a todas as meninas que são amamentadas a sonhos românticos, a positivismos de alcofas e a linearidades de percurso, isto é, descobrem que tudo é uma treta e levam com dez doses de realidade de uma vez, ao invés de optarem pelo doseamento controlado.
Ela não foi dura com a filha, ela disse-lhe a verdade.
Esta nossa Justine de vestido branco e mamas espartilhadas trabalha na publicidade, no meio da venda, do envenenamento… cá para mim estando ao lado de um pai que não é pai e de uma mãe de peito seco, juntou-se-lhe a vivência no meio do mundo fabricado onde se enfia garganta abaixo a legitimidade do oco, do pueril, as convenções sociais e boom…
There's nothing to mourn about death any more than there is to mourn about the growing of a flower. What is
terrible is not death but the lives people live or don't live up until their death. They don't honor their own
lives, they piss on their lives. They shit them away. Dumb fuckers. They concentrate too much on fucking,
movies, money, family, fucking. Their minds are full of cotton. They swallow God without thinking, they
swallow country without thinking. Soon they forget how to think, they let others think for them. Their brains
are stuffed with cotton. They look ugly, they talk ugly, they walk ugly. Play them the great music of the
centuries and they can't hear it. Most people's deaths are a sham. There's nothing left to die.
(Charles Bukowski)
Ao lado das suspeições há o factual ódio que ela nutre pelo chefe que se pavoneia como um ser evidente e ambicioso.
Nothing, is too much for you diz-lhe Justine…
E ele desmorona-se desesperado e sai da imagem que faz de si, parte o copo. Será que também ele quis ser um homem ambicioso e materialista?
Será que o Mundo lhe deu o luxo de poder dizer não e continuar a alimentá-lo?
E o noivo?
O noivo faz-me lembrar os príncipes que se vêem a si mesmos como príncipes e, por tal, sentem a
necessidade intrínseca de ter uma princesa que nem sequer conhecem, querem que ela se deixe arrebatar, que sinta o amor dos trovadores e seja a Rapunzel resgatada.
Love is a form of prejudice.
You love what you need, you love what makes you feel good, you love what is convenient.
How can you say you love one person when there are ten thousand people in the world that you would love more if you ever met them?
But you'll never meet them.
All right, so we do the best we can.
Granted.
But we must still realize that love is just the result of a chance encounter.
Most people make too much of it.
On these grounds a good fuck is not to be entirely scorned but that's the result of a chance meeting too. You're damned right.
Drink up.
We'll have another. (Charles Bukowski)
Ele pensa que a ama, ele ama-a mas o amor não existe.
Ela quer esquecer a dor, ela quer agradar à irmã, ela quer tentar ser feliz: enganar-se... e quando lhe leva a mão pelo vestido e o provoca e sorri matreiramente e sai e mais tarde não lhe cede à vontade de a possuir acabando por foder com o rapaz que conheceu à instantes no relvado, faz-me lembrar do gajo do Shame.
A primeira incursão, a masturbação, foi o uso do escapismo -o mesmo que se faz com a droga, o álcool e os
demais prazeres- vontade de fuga, por instantes, da dor, da realidade, a segunda foi o castigo.
And my own affairs were as bad, as dismal, as the day I had been born. The only difference was that now I
could drink now and then, though never often enough. Drink was the only thing that kept a man from feeling
forever stunned and useless. Everything else just kept picking and picking, hacking away and nothing was
interesting, nothing. The people were restrictive and careful, all alike and I've got to live with these fuckers
for the rest of my life, I thought.
God, they all had assholes and sexual organs and their mouths and their armpits. They shit and they chattered and they were dull as horse dung. The girls looked good from a distance, the sun shining through their dresses, their hair. But get up close and listen to their minds running out of their mouths, you felt like digging in under a hill and hiding out with a tommy-gun. I would certainly never be able to be happy, to get married, I could never have children. Hell, I couldn't even get a job as a dishwasher. (Charles Bukowski)
Este homem, agora marido,estava ali, atraente, provavelmente bom partido, amava-a mas não a entendia, nem a atingia, ele amava algo que ela não sabia ser.
Ela, na sua desvontade, na descrença nessa convenção social que é o amor, sente-se culpada, diferente, tudo isto lhe é tão sagaz que o nojo de si mesma, a impureza que sente em si lhe traz a vontade de castigo e castiga-se ao oferecer o corpo ao primeiro que lhe aparece, como se não conseguisse optar pelo caminho correcto, como se precisasse de se danificar, de descer mais.
Talvez fale da segunda parte noutro dia mas deixa-me dizer-te que não me parece que a descoberta do
Melancolia tenha invertido os papéis das irmãs, como se de repente a Justine ficasse curada, parece-me, antes
que vendo a iminência do final do Mundo, deste Mundo donde ela não vê saída, que ela detesta, cheio de maldade, às avessas, é como se visse a luz ao fundo do túnel.
Sente-se em casa neste território de desesperança com o qual sente empatia, reconhecimento, alívio.
Finalmente tudo vai parar: paz.
I was drawn to all the wrong things: I liked to drink, I was lazy, I didn't have a god, politics, ideas, ideals. I
was settled into nothingness; a kind of non-being, and I accepted it. I didn't make for an interesting person. I
didn't want to be interesting, it was too hard. What I really wanted was only a soft, hazy space to live in, and
to be left alone. (Charles Bukowski)