Somos órfãos até de nós próprios.
Abandonámo-nos.
Não há nada aqui, não há magia, esperança, fé.
Não sei como era séculos antes, ou nos primórdios... mas, agora, está tudo ainda mais maquinal do que na ida Metrópolis, não há nada aqui em baixo, já não há, acredito que houve, nalgum momento no tempo mas não agora, não agora.
Não há misticismo, mistério, fantasmagoria, epifanias…
Estive a ouvir Sigur Rós, aquela música que parece uma litania fúnebre.
Nos meus anos de adolescente, lembro-me de estar a ver a tabela de discos na televisão e do nome destes gajos aparecer, várias vezes, por ali. Passavam telediscos deles também, deviam vender bem por cá, aliás sempre tive a ideia de que a relação de Portugal com eles era bastante profícua.
Na altura não ligava muito a música, nem sabia bem o que era.
O que passava era uma merda e aquilo que não o era, não chegava cá.
No caso destes islandeses, não percebia ou achava aborrecido e demasiado divagador, já não recordo.
É curioso que, mesmo na altura da ditadura das editoras, que graças à internet acabou de vez, havia alguns furões que conseguiam escapar até lugares tão recônditos quanto aqui o bosque que, certamente, seria bem mais perdido que Reiquejavique.
Estou a conhecê-los, hoje, depois de tantos anos… hoje e agora que a minha cultura de música etérea e shoegaziana é um pouco melhor e a solitude mais à vontade.
Nas alturas em que me resvalo, um pouco, da violência para permanecer por outras paragens, páro muito.
Devo agradecer aos Alcest que, tantas bandas novas e admiráveis já me ofereceram e que, uma vez mais, me desataram novos/velhos atilhos.
E, pronto, já que o Winterhalter e o Neige foram gravar o novo disco para a Islândia, no estúdio e com o produtor dos Sigur Rós e, graças a uns pozinhos vampirescos lá me decidi a visitar as encostas destes ambientes sonhados.
Escusado será dizer que as que mais me adocicam são as tristes, as muito tristonhas.
Impossível não me lembrar, um pouco, dos Dead Can Dance, Cocteau Twins e mesmo dos My Bloody Valentine, tudo divindades e, mais uma vez, é preciso maturidade e calmaria para namorar as conchas.
A escrever-te e a lembrar-me do primeiro concerto que os My Bloody Valentine deram em Portugal, foi num festival novo, lá p’ro Algarve, onde os Offspring eram cabeças-de-cartaz e actuavam a seguir aos referidos, já podes imaginar o conflito de públicos…
Li por aí um fã da banda americana dizer que até gostou do som dos irlandeses (à parte do holocausto) mas que gostava que os vocais estivessem mais audíveis, fossem mais proeminentes.
Destaque é tudo o que o Shoegazing não é, aliás, conta-se por aí que o epíteto do género foi começando a pegar porque os guitarristas que iniciaram por este terreno estavam sempre de cabeça baixa, olhos postos nos pés, isto é, nos pedais a causarem a tão definitória distorção.
Assim, a voz neste género não tem a mesma superioridade ou não coloca a cabeça no outeiro como a da ópera, a do rap ou a do RnB.
A voz, aqui, é mais um instrumento, as palavras só estão ali porque sim, podiam significar coisas ininteligíveis, podiam, olha a glossolalia da boca da Elizabeth Fraser, da Diamanda ou mesmo o dialecto esperançoso do vocalista dos Sigur Rós, não interessa, é para o the greater good como diria o Reznor que anda por aí a espreitar.
E não sei porque fui por aqui, eles nem sequer são shoegaze, são pós qualquer coisa, rock, sim rock ah já tinha dito…
E coloquei os auscultadores e fui à deriva até ao monte.
Já estava a escurecer e caiu aquela ambiência nocturna que me causa água na boca, o céu com bocados bem escuros, o vento espesso a sacudir as árvores todas, ainda bem que tinha o cabelo entrançado e preso com ganchos, não chovia e estava frio seco.
Lá de cima, olhei para o lá em baixo e lembrei-me da dureza de tudo e lembrei-me de uma entrevista do Johannes dos Cult of Luna aquando, provavelmente, do Somewhere Along The Highway, ou seria do Salvation?
Não, não era… em que eles tinham ido gravar para um celeiro, ou cabana lá p'ro meio dos nenhures suecos e, durante a noite, viram uma rapariga de branco lá ao fundo e nunca chegaram a saber de onde vinha ou para onde foi…
Bem, se calhar inventaram isso, como inventaram a historia do Holger Nilsson no Eviga Riket, confesso que fiquei fodida, até já estava com ideias de traçar um paralelo entre os males do Reino do Ugín e o mal nascente do Twin Peaks mas agora não me apetece, não, que não existam pessoas, aparentemente, sofredoras de distúrbios mentais a cometerem crimes e a não assumirem os mesmos, acusando seres aparentemente fantasiosos…
Digo isto porque estava ali, no alto, com o vento a levantar as folhas que não caíram e o céu negro cedia algumas pingas de chuva ou lágrimas de Deus porque a música chorava e porque o Mundo é um lugar tão triste e tão sozinho e tão sem pai, porque estou triste e quando estou triste todas as gotas são lágrimas.