“We are like roses that have never bothered to bloom when we should have bloomed and it is as if the sun has become disgusted with waiting”.

04
Abr 13


Estágio primeiro: O sete de oiros


Ora bem, eu não gosto de David Bowie, não gosto de Dream Theater ou de Vivaldi, não sinto nada a ouvir Jeff Buckley ou Bob Dylan, detesto os Beatles e os U2. Só gosto de uma ou duas músicas de Bauhaus e o mesmo se passa com os 69 Eyes. The Cure aborrecem-me ao final de meia hora, o mesmo se passa com Placebo e Clan of Xymox. Não gosto de Siouxsie & the Banshees ou de Nina Hagen mas admiro as senhoras. Não suporto Epica e podia ficar aqui a noite toda.

A mais anuente discípula espelha rapidamente o ódio desde a raiz até às pontas.


Estágio segundo: A lua


Está a rodar aquele cd que veio na última edição que comprei da Elegy Ibérica mas o quadro funerário do unplugged dos Nirvana que nina aos acordes únicos da The Man Who Sold The World não me sai da cabeça.

Alumiado por velas pretas e com boas doses de lírios brancos, um impossivelmente belo Kurt Cobain, de casaco de lã dedilha a guitarra e apazigua o sal do Mundo.

Os cabelos amarelos e intoxicados a caírem-lhe pelos olhos doentes, imensos e tristes, olhos mostrando que mesmo no remoinho de doses e doses generosas de escapismo não perderam o orgulho de animal selvagem, a vontade de alma presa que quer retornar ao criador.

Ninguém poderia ter oferecido a esse desespero uma visão cinemática tão bem conseguida quanto Gus Van Sant.

Acorre-me à memória, a última cena, aquela onde a alma do Blake se desata do casulo e sobe pelo gradeamento da janela francesa em direcção a casa.


Estágio terceiro: O Cavaleiro de espadas


Afinal não há esperança.

As the sun hits, she'll be waiting... canta o vocalista dos Slowdive, banda a que estou a apresentar os meus ouvidos e inteiramente todo o meu ser, pela mão dos Alcest.

Já que o dito vai participar no novo álbum dos franceses, é bom que me aclimate à voz e estou a gostar, não há esforço algum a fazer.

Aos catorze anos abandonei a escola e aos dezasseis tive o meu primeiro trabalho, nessa casa havia uma rapariga de cabelos pretos chamada Natércia que ainda hoje abomino.

Acho que o meu desencanto pela vida deve ter agravado a minha capacidade de adaptação àquele sítio, ainda hoje, se passar pelo local sinto desconforto… ninguém andou à pancada, ninguém morreu mas a contrariedade e o desencanto e a melancolia, sim, pululavam dentro de mim e foi muito difícil concentrar-me no essencial.

Acho que já escrevi para aqui que não gosto particularmente de comer à frente de estranhos e, lá, inventava sempre qualquer coisa para poder comer na cozinha longe deles. Não, não sou anoréctica.

Já não me lembro por que carga de água desatei a chorar mas era um choro familiar, um pranto de sufoco, de desespero, de fundura que se desbravou quando fugi dali para a estrada.

Podia muito bem, a gravidade, ter-se cessado para que as minhas costas se pudessem colar de supetão à superfície lunar.

Passava a maior parte do tempo em silêncio e a Natércia de cabelos escuros e corte anos vinte resplandecia em ares de sobranceria no quanto era experiente, dinâmica, aventureira, forte e vivaça, imiscíveis éramos.

Acho que ela me achava aberrante, quando não me via com desdém.

O meu mais recente cão, um pequenino ladino e castanhito abandonado rafeiro, é muito assustadiço, então cada vez que lhe vou levar comida e tento brincar com ele, ele inclina a cabeça e, angular e mecanicamente esparsa os olhos, confuso e perscrutador, exactamente a reacção dela.

Costumava dormir no quarto de uma senhora com alzheimer mas, depois, comecei a dormir no quarto com a moça, ambas detestávamos e eu preferia mil vezes a velhota nas suas mil e uma inquirições sobre a minha identidade do que a menina que fazia questão de passar o seu caro creme nocturno, usar um pijama moderno e falar alto com o namorado ao telemóvel entre sorrisinhos excitaditos.

Estavas tão longe sua idiota, se querias provocar a minha inveja, estavas siberiana de lonjura.

Ela queria forçosamente transparecer o quanto era urbana, moderna, emancipada, ah e não esqueçamos que usava dois cremes diferentes consoante fosse a lua ou o sol a banhar-lhe a tez.

Havia que mostrar à campónia o que era uma rapariga com maneiras.

O que será que eu fazia dentro de mim, nessas alturas?

O que mais detestava era o seu sorriso de condescendência quando se queixava de mim à madame, ou quando foi mexer no meu saco… talvez procurando pelo meu caderno medicamentoso, (não vou dizer o que encontrou em vez disso) mas hoje que penso nela, refundo a minha posição: não me dou bem com mulheres, a maior parte traiu a minha confiança, a maior parte soa aborrecida, chata, moral, preconceituosa, pequena, retrógrada, consciente demais.

Contudo, as que tenho comigo, estão-me junto ao coração e são raras, amigas mulheres nunca foi o meu forte.

Todas as raparigas dessa época me enojam, as da escola, as da família, as do trabalho, todas miudezas, más, idiotas, ainda as detesto, o ódio em mim é continuo, desde a energúmena da escola primária que me ridicularizava, a esta fulana que trabalhou comigo até eu apanhar a oportunidade de nunca mais lá pôr as patinhas, queria voltar a estudar, disse eu, um dia, e voltei depois de outros trabalhos, depois de outras experiências, depois de outras estações os mesmos olhos cadavéricos a mesma esperança morta.

As the sun hits, she'll be waiting
With her cool things and her heaven

publicado por Ligeia Noire às 01:04
música: "When the sun hits" dos Slowdive
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