Estava a recomendar-lhe a versão do quarteto de cordas da Join me in death numa de gozo mas se casasse, não haveria dúvidas de que era com essa que entrava, o romantismo levado ao extremo, junta-te comigo na morte porque em direcção ao altar eu caminho, dizem no oriente que a morte traja de branco, há velas e flores, Cristo de sangue ungido nas mãos e pés, tu vestes de negro e levas violetas na lapela, punhos e cravat de renda branca, despediríamo-nos assim, ali, da vida e que a morte me abençoasse contigo.
Talvez tirasse de lá as pessoas, as pessoas não fariam falta, a menos que fossem outro tipo de pessoas.
O Valo explicava, aquando do boom que foi o Razorblade Romance, que a canção não era sobre o suicídio mas uma versão moderna da estória de Romeu e Julieta, a minha amiga diz que o organista provavelmente não a saberia tocar… ela escolheu três músicas e perguntou qual era a minha favorita, o cânone em ré maior do Pachelbel claro, não conhecia o gajo mas quem não conhece o tema?
Agora que estou metida nisto fico surpreendida com o protocolo e os rituais que proliferam na cerimónia.
É que há várias composições de Mendelssohn, Händel, Bach, Beethoven ou Verdi para cada momento, há para a entrada das Damas de honor, para a entrada da noiva, para a saída do altar dos noivos, para a saída do altar dos convidados… uma profusão de rituais simbolistas admirável.
Também me falava de que queria que fosse cantado o Avé Maria, sim esse do Schubert, na altura da troca das alianças, o que irá acontecer porque como fazia parte do grupo coral, há um tenor que irá proporcionar o momento, o restante enlace será acompanhado por vozes e piano dos restantes elementos, só espero que não esteja demasiado calor, porque isto de desmaiar lá à frente é coisa que ainda não experimentei.
Trabalhei no Domingo até meio da tarde, o calor era tanto que não sabia se me apetecia saltar do primeiro andar ou atirar a outra e dormir um sono depois.
Ainda por cima, pedi ao meu irmão para me ir buscar e a meio do caminho o carro avariou… resultado: fiquei a conhecer melhor a namorada dele, enquanto ambas riamos nervosas ao contemplar o que ele e os amigos magicaram: rapinar uma corda de um portão para rebocar o carro com o carro de um deles, se não morri de ataque cardíaco já não morro.
Falta uma semana e estou nervosa, ando para aqui a falar de casamentos e trabalho e calor, ando às voltas e voltinhas e ignoro e ignoro e reparo que hoje não há metáforas, nem parágrafos barrocos, é só trivialidades e menoridades.
As coisas em que eu me enovelo, Jesus Cristo.
Voltemos às menoridades, eu não me apoquento com estas coisas: viagens, trabalho, dinheiro, casa, carro, família, ela foi lá passar o fim-de-semana, disse-me que a nossa prezada estava bem na vida, que a casa era maravilhosa etc. e tal confesso que a princípio fiquei um pouco confusa, a hesitação (Hesitation Marks ah ah ah) quis entrar mas foi só isso, somos diferentes, eu admiro-a, somos diferentes e pronto, avaliei, pactuei, brinquei com ela, tentei parecer-lhe o mais normal e comum possível nas observações que fazia mas na realidade mandem-me para Tóquio, eu visto aquelas saias rodadas pretas e atiro-me de um arranha-céus com um sorriso oco no rosto.
É por dentro que os fios têm de estar ligados, é por dentro que têm de fazer sentido, por fora só me interessam a roupa e os sapatos enlaçados.
Às vezes, ainda me ocorre pedir a um gajo muito mau e poderoso que me salve e me coloque no berço mas são apenas desejos iguais aos dos chocolates ou dos sapatos pretos de correias que comprei hoje: fomes.
A Join me in death, lembro-me bem… andava para aí no segundo ano do curso e ao chegar às aulas da parte da manhã, ouvi aquele memorável início, aquelas notas de piano a ecoarem pelo átrio, arrepiei-me da cabeça aos pés, era como se alguém te estivesse a ver de lingerie sem quereres, era a tua intimidade ali espalhada por todo o lado, por rapazes de boné, homens de camisa, raparigas de piercings, raparigas platinadas, estava baixinho, a maior parte deles não se apercebeu mas eu… eh pá… para mim era como estar na terra dos mil lagos, em altura do sol da meia-noite.
Não havia rádio na escola, rádio no sentido de uma emissão com locutores e tudo, como nessas escolas da treta americanas. Provavelmente, era uma aparelhagem lá no quarto escuro deixada em modo de repetição, a música tocou o dia todo, os meus colegas nunca mais a esqueceram, ainda hoje sabem quem eles são, ainda hoje se lembram de mim quando os ouvem ou vêem o heartagram, tenho de ir à Finlândia um dia destes pedir-lhes comissão.
Eu bem digo que um dia conto a minha história de enamoramento por estes rapazes mas duraria tanto tempo, envolveria tantos momentos, pessoas, caminhos sem retorno e eternidades consoladas a álcool, que ficará para o dia último, noite última, sim, noite.