Quando me levantei, olhei para as rosas e pensei em pegar numa, mas deixei-as quietinhas. Não são as minhas rosas, não têm perfume e enfeitam a mesa de um casamento, a mesa de um casamento numa quinta no meio de árvores, rosas centradas numa toalha negra com debruados prateados, onde um castiçal de pé alto segura velas que se extinguiram quando a noite se fez.
Ao meu lado estava a rapariga de cintura fina que se vestiu no carro quando me veio buscar e, ao lado dela, o nosso militar preferido e depois eram pessoas estranhas.
Não sei bem como estava, sei que a conversa foi agradável e risonha, falámos desde os nossos dias no curso, dos jogos ocultos que encetávamos, da corrupção, da vida lá fora, do preço do arroz, da recruta, do Shining, filmes sem sangue e tripas mas com espíritos, até às fotos feias que nos tiraram e às fotos bonitas que tirámos com a rosa entre nós.
Dançámos os três mas dançámos mais as duas.
A certa altura, já no jardim sentada, coloquei o copo de champanhe na beira da janela e não me levantei para admirar os morteiros que iam iluminando o céu escuro da floresta que albergava tantos movimentos escritos e coordenados.
Puxei o fio da memória, uma memória recente, memória de horas anteriores:
«então, a próxima vez que nos encontrarmos vai ser no teu casamento...
-Eu não quero casar.
-Dizes isso porque não estas apaixonada.
-Estou apaixonada e continuo a não querer casar. Sabem, na verdade, não queria nem ter de viver com alguém…»
Quando era mais nova nunca me vi casada ou com filhos, sempre me imaginei a viver sozinha, o meu paraíso, os meus discos, os meus filmes, o meu canto.
«Ai não, não. Sentir-te-ias sozinha e quando quisesses conversar?»
Eu sempre me senti sozinha, sempre me senti por desabafar e, mesmo quando o fazia e quando tentava mais a sério, nunca me entendiam os amigos, foi sempre a escrever que atingi o propósito que é tido nisto do desabafar, no haver de um confidente, talvez não saiba falar em condições, talvez não saibam ouvir em condições.
Não, não quero casar porque não quero partilhar algo tão íntimo como o meu amor, os meus beijos, as minhas palavras açucaradas com pessoas de olhos e câmaras fotográficas esfomeadas, não quero passos e gestos encenados, já sei tudo isso de cor e enjoa-me, compreendo mas não assino por baixo.
O mesmo sinto quando me passam o caderno de honra... nunca sei o que escrever, sei sempre que vou mentir, escrevi três linhas neste e ela reclama:
«no meu só escreveste felicidades, sinceramente...»
Nem sei que lhe respondi, acho que encolhi os ombros mas se lhe dissesse que não queria mentir, não a ela, não iria entender de qualquer das formas porque ela agora é casada e tem um cão e uma casa.
Não houve igreja, houve largada de pombos e discursos à-estado-de-rede-social, houve mais daquela música que detesto, vestidos demasiado curtos, compridos, justos, ondulantes, coloridos... houve isto e aquilo e ele brincava:
«no teu, teria de haver uma banda gótica a fazer-te a entrada» ela brincava também:
«já há gente a casar de negro», pensava eu: nem tu imaginas quantas e acho tudo muito bonito e criativo, como quando me mostram o álbum de fotos da família mas onde está aí a diferença?
Continuam a ser protocolares, para os outros, encenados, só muda a cor e a música e talvez eu não me aborrecesse tanto nesses, já não tenho vinte anos e a diferença reside noutro lado.
Ele ligou-me, fui para o fundo do salão, era tarde lá e ele bebia vodca à minha saúde, a minha boca sabia a Baileys, o meu corpo sabia ao aperto do enlace do espartilho.
Olhava para o tecto de madeira, para o bolo, para os noivos bonitos e felizes, felizes talvez da felicidade deles, daquelas pessoas, pessoas que seriam provavelmente tios e tias e avós e pais e coisas que tais e sabia que eu não saberia passar por aquilo, não sou anfitriã, odeio ser o alvo de olhares e expor a minha intimidade e aquilo que sinto aos outros porque conquistar, seduzir, charme são brincadeiras de menina mas o amor e a paixão são tão íntimos como o sutiã que não trazia, como o cinto de ligas que nos enlaça a cintura mas que é magia nossa, não sei, não sei, é um admirável mundo novo, terreno minado.
«-Quando mo apresentas? E ele quer casar um dia?
-Nem casar ou ter filhos.»
Talvez nem dormir comigo todos os dias, gosto que ele goste de quartos separados, de cedência a vontades... apenas.
Quartos a funcionarem como frigoríficos, abrem-se quando temos fome ou sede.
Gosto das nossas determinantes diferenças, da minha natureza de gata arredia e do galope do seu cavalo medieval, gosto que isso se transfigure em ideias de esterilidade e antipatia para com o mundo que nos rodeia.
Prossigo com medo e sensação de ameaça mas um destes dias alguém mais velho revelou algo muito sábio que eu ainda precisava aprender: há sempre uma parte de nós que tem de se guardar, de adormecer, de ceder, de ser deixada para trás quando nos apaixonamos. Dizia ela que, o dia mais triste da sua vida foi o dia em que conheceu o marido porque sabia que não daria de outra forma, que com aquele era a sério, era amor e o amor e a individualidade não se coadunam nunca.
Ainda me custa saber a certeza disso mas há o equilíbrio, é esse o segredo de tudo, uma boa canção tem de saber ser equilibrada em todos os seus braços.
Viemos embora tarde, fui falando trivialidades até chegar a casa e poder fechar os olhos, foi bonito, foi aborrecido, gargalhadas e análises deliciosas de três amigos sentados num sofá de jardim acantonado num passadiço, enquanto eles casavam.
Em cima da mesa tenho o leque de madeira, com um padrão de tulipas de um rosa arroxeado que ela trouxe de Havana e me ofereceu.
Não, não era capaz.