Por isso não pensou em suicídio: existem angústias tão desoladoras, tão infinitamente cruéis, que nós temos a sensação nítida de que já passámos para além da morte, em muitos dias da vida, por coisas de bem menor importância, por mil complicações enervantes e mesquinhas, lembrámo-nos de desertar com uma bala, chegámos até a pegar no revólver.
Porém, em face de uma catástrofe horrível nunca admitimos a hipótese de a vermos consumada, não pensamos nem por um segundo nessa libertação. Não pensamos porque a nossa dor foi tamanha que mesmo na morte não acharíamos refúgio para ela, a nossa dor foi tamanha que realmente morremos já.
E como morremos já, não importa que continuemos vivos. Demais, ao peso dessa angústia, toda a nossa vontade ficou abolida. Ora, digam o que disserem, ainda é imprescindível uma grande força de vontade para desfecharmos uma pistola sobre nós próprios, para nos precipitarmos de uma ponte, para emborcarmos um frasco de veneno.
-Ah, quer dizer: Você não considera o suicídio uma covardia?
Mas de forma alguma! Acho até que um suicida é uma criatura de enorme coragem. Escusam de me interromper…
Sei muito bem que um suicida é um desertor: a existência torna-se-lhe impossível; ele fugiu-lhe. Perfeitamente. No entanto, para fugir, teve que praticar um acto muito mais violento – logo, muito mais corajoso -- do que praticaria se continuasse a viver. Se continuasse vivo, conformava-se no fim de contas com a lei comum. -- «A vida é um sofrimento eterno» -- Sujeitava-se. Mas ele não se sujeitou, morreu às suas próprias mãos – isto é: revoltou-se. Ora, meus amigos, «revolta» foi sempre sinónimo de audácia, de coragem, de energia.
Os suicidas! Ah! Com que entusiasmo os admiro, como os respeito! Eles realizaram aquilo que quiseram. Eis a sua grande superioridade. Valem bem mais do que eu, que tenho tanto desejo e nunca serei capaz de despejar um revolver sobre o meu crânio. Quem vive bocejante, lazeirento como eu vivo, e continua a viver, não é só um covarde – é um miserável.
Rogo que não vejam nisto o pessimismo oco e banal da mocidade literária. Embora de um escritor, estas palavras por acaso são sinceras: tenho vinte e dois anos, e não creio em coisa alguma; olho em volta de mim e não vejo nada que me atraia, nada que me encante, nada para que viva. Sinto, verdadeiramente sinto, que me barraram todo o corpo com uma camada de gesso muito espessa que me prende os movimentos, me aniquilosa os músculos.
Para a doença física em que a vida se me tornou, só existe um remédio: o aniquilamento. No entanto, nunca terei a força de vontade necessária para absorver esse temível elixir. Os meus amigos podem estar perfeitamente descansados. Apesar de tudo, continuarei vivendo; apesar de nada me distrair, não deixarei de frequentar teatros; apesar de não crer em coisa alguma, irei compondo mais livros, sempre mais livros, na conquista de uma vã quimera de ouro… gritando sem cessar a minha desgraça, amaldiçoando a existência, irei gozando do que nela houver de bom – como a outra gente afinal. E escrevi tudo isto…
Literatura, meus amigos, literatura…
In O Incesto de Mário de Sá-Carneiro