“We are like roses that have never bothered to bloom when we should have bloomed and it is as if the sun has become disgusted with waiting”.

01
Nov 10


(…) Às vezes, crescemos tão afastados do tempo que imaginamos que as coisas ficam ali à nossa espera... Afinal, quando chegaram, o local já não existia, aliás, o local estava lá, apenas dedicado a outras lides. Apetrechado de publicidade a telemóveis, uma loja… Uma lojinha.

 

Bars come and go, that’s it.

 

Pena, nem sequer havia tido tempo de conhecer. Acabaram por parar num bar um pouco duvidoso. A noite tinha começado há um par de horas, não havia muitas pessoas no local, o que era óptimo. Sentaram-se a um canto ofuscado e ficaram ali a conversar. O bar até que era agradável. Não havia aquele hype da noite na cara dos que por ali abancavam e as bebidas não eram compostas por gelo e mariquices. Depois de um cigarro, L responde por entre o fumo:

-Sim, também gosto. Acreditas que nunca aqui tinha estado? Ena, ena eu que gosto destes esconderijos esqueci-me de os procurar nesta zona. É que, normalmente, esta área é mais turística que íntima e discreta.

-Sim, isto é realmente enigmático. De qualquer forma não me aventuraria nestes locais sem ser com algum nativo.

-Ah pois é, até porque te perderias.

-Muito engraçada… de qualquer forma vais ter de me trazer aqui mais vezes.

-Tu tens a desculpa do mau sentido geográfico mas eu nem sequer sei como cá vim parar.

-E esta música?

Gosto bastante, não reconheço mas parece-me uma mescla de Depeche mode com Dead Can Dance.

- E vem provavelmente das profundezas porque o som não se ouve propriamente bem.

-Pena, se fosse algo mais carnal até que ia dançar ali para o canto-escuro-que-supostamente-é-a-pista…

-ah ah ah não devias ter dito isso…

Passou-se algum tempo e o som das profundezas do sítio desconhecido descia-lhes pelos braços nus e pousava-lhes directamente nas mãos.

Assim se passou quase uma hora. Entre bebidas transparentes e sons quiméricos o mundo ficou lá fora.

A noite já ía bem crescida e as poucas pessoas que se encontravam a dançar já tinham deixado o bar. L, já cansada, regressou à mesa e bebeu uma garrafa de água quase de um trago. M, meio zonza, dirigiu-se à casa-de-banho.

O tempo é incontado e quando a luz chegar, toda a insuficiência vai estar no mesmo sítio à espera de ser vista porque, uma vez vista, é albergada na alma.

Durante os minutos enevoados na mesa, M ia tentando perceber se estava muito bêbada. Talvez a bebedeira não fosse propriamente a única causa. Se havia algum sentimento que ela prezava era a amizade. A amizade é aquele pendente de oiro que os pais nos oferecem e que nós nunca tiramos. Aquele cliché em que, já velhos, nos sentámos na cama e olhámos para o fio e de repente tudo pára. Realmente, as coisas distinguem-se por elas mesmas, não sei porque se perde tempo a questioná-las.

 A porta do bar era realmente tenebrosa, cada vez que alguém entrava ela arrastava-se como se de uma senhora velha a queixar-se de anos de trabalho se tratasse. Era um pequeno grupo que acabava de chegar. Uma rapariga vistosa e altiva, um rapaz nos seus vintes e muitos com aparência de -não estou cá- e olha, olha, o nosso ilustre desconhecido no meio deles e desta vez, a nossa menina teve a certeza de ter sido vista. De facto, seria difícil não o ser… Estava com aquele ar de quem gostava de parecer indiferente mas realmente era só mesmo a vontade.

Enregelou.

Não se sabe se por ele a ter visto, se por ela ter percebido que ele estava ali e era uma pessoa. Mais duas raparigas vinham nesse grupo. A aparência era mais ou menos a mesma de todos eles. A idade era pouco perceptível não tinham mais de quarenta nem menos de vinte. O rapaz mais baixo trazia óculos escuros e todas as raparigas estavam com ar altaneiro e carne de porcelana. A bem dizer e sem querer correr o risco de chover no molhado o nosso senhor era diferente deles. Para quê alongarmo-nos nos detalhes que já atrás descrevemos?

Era raro, apenas, e só. L estava ao balcão a pedir uma água e a pagar a conta, M queria pagar a sua, detestava que L se antecipasse mas o gelo dos pés era espesso e mais espesso se tornou quando viu a amiga a cumprimentar o pequeno grupo de desconhecidos que acabava de a congelar. Quando regressou à mesa, M olhou-a com pasmo:

-Conhecê-los?

-Conheço o de cabelo preto e a rapariga de cabelos louros, os outros conheço de vista. Da noite de cá. O gajo do lenço nunca vi. (…) Estranho nunca o ter visto. Tenho a certeza de que se ele andasse pelos sítios da zona, não passaria despercebido. Nesta fauna tudo se confunde quando se quer ser diferente.

-Eu já o vi.

-Ah então conheces o ilustre e ainda dizes que nada de novo se passa por lá.

-Não é caso para tanto. Eu não o conheço, apenas o vi algumas vezes.

-Espera lá, algumas vezes?

-Eu conto mas se calhar é melhor irmos andando, já viste as horas?

-Foda-se é mesmo tarde e eu a pensar que ainda dava para te levar a outro sítio…

-Esquece lá isso.

O grupo estava acomodado num recanto almofadado e conversava. O cavalheiro de que as amigas se interpelavam estava entre tabaco e chá a admirar a fauna e de quando em vez entrava na conversa dos que o acompanhavam. Quando M se levantou, não pôde evitar que os olhos lhe fugissem para ele. Estranhamente, ele não desviou olhar e esboçou um sorriso mordaz. Inspirou de um trago o último fôlego do cigarro e voltou para a conversa.

Elas já estavam a caminho de casa.

-Foi um pouco estranho. Sabes que por lá nunca costumo ver ninguém muito diferente. Quer dizer, realmente diferente. E os que se destacam, já os conheço de vista. Não que não haja pessoas interessantes na comum aparência, mas não lhes ando a perguntar...

Sabes como a nossa forma exterior é uma extensão de nós mesmos. Como diz um escritor, que agora não recordo o nome, o ideal seria o interior ser completamente respeitado pelo exterior ou algo do género… Bom, um dia fui até à loja de discos e vi-o. Eu estava a subir as escadas e ele descia. Olhei para ele, como olharia fosse para quem fosse e fiquei perplexa porque não esperava ver alguém assim por ali. Não que fosse bizarro mas acho que quando estamos despercebidos a desviarmo-nos porque esperamos ver uma senhora rabugenta e cheia de compras e depois... enfim… Ele olhou também, mas acho que não fez muito caso. Estranhei porque ele era fortuito, ele continuou porque eu era mais uma (…).

Eh pá... acho que estamos a dar demasiada importância a esta treta mas ok. Quando cheguei ao cimo das escadas ainda pensei em esperar para ver para onde ele ia mas ganhei juízo e fui ler para aquele jardim. Fiquei lá umas duas horas. Quando o sol se começou a pôr levantei-me e, de repente, vejo-o ao fundo da rua. Era ele, notoriamente. Distingui-lhe mais uns pormenores e fiquei a vê-lo desaparecer à medida que virava a esquina.

-Que cinematográfico.

-Extremamente. Confesso que não quis pensar muito no assunto, mas dei por mim a ir ao mesmo sítio no dia seguinte mas sem sucesso. Não voltei lá, até umas semanas depois, para ler, como sempre. No entanto, não sei por que razão ergo a vista e volto a vê-lo mas desta vez dirigia-se a um banco de pedra a dois ou três metros de onde eu estava. Fiquei completamente embasbacada e senti-me corar como fogo e tentei esconder o rosto no livro e deixar o cabelo tapar-me um pouco. Apercebi-me de que ele se tinha sentado a fumar. Era realmente muito bonito e confesso que fiquei a contemplá-lo por segundos. Contudo, não parecia ligar muito ao que se passava à sua volta. Pus os auscultadores e comecei a ler. Quando ergui os olhos de novo já ele estava a dirigir-se à mesma rua de que te falei e foi-se (…).

-Sim, que é muito altaneiro também reparei. Que se foda. Deixemos o rio à vontade. Precisas é da Babilónia.

-É verdade. Fodas, drogas e rock & roll.

 

VI

 

A semana tinha começado desgraçadamente. O dia estava demasiado quente, o estômago ardia e tinha recebido uma cliente chata como o caralho, a gaja desarrumou três estantes e ainda saiu a reclamar. O que a deixou ainda pior.

Mas será que as putas andam aos pares? Pergunta existencial sem resposta.

Somos obrigados a fingir que sabemos tudo.

Somos obrigados a viver, somos obrigados a ser quatro pessoas.

A decisão foi tomada depois de dias a pensar no possível futuro e, também, no esforço que estava disposta a despender. E o resultado foi tão minúsculo que a resposta desceu de pára-quedas.

Não sabia se o futuro era mais negro que o passado mas sabia que ambos eram escuros. Claro que o emprego não era eterno mas pelo menos era livre de pressões diárias e, se havia algo que M tinha assente, era o facto de que ambição e objectivos nunca fizeram parte do seu dicionário.

As metas a suster eram as contas pagas.

Às vezes, tinha a convicção de que o mundo seria engolido a qualquer instante e de que se veria livre das correntes ou então, de que tinha sujado a sua vida com tinta-da-china e, a menos que recomeçasse com uma nova alma, jamais poderia pensar em futuro.

Nada de muito diferente se havia passado, M tentava entender por que motivo, se não era ambiciosa e se o futuro lhe estava inquinado, ela se sentia tão imperfeita, vazia, vã... Seria ânsia de chegar ao próximo receptáculo?

A moderna obsessão pela individualidade é assustadora. Já ninguém se contenta em ser normal e razoável, todos são assoberbados e desejosos de ouvidos e olhos que os oiçam e bajulem... mas, não é errado generalizar? É?

Tanta vontade de se ser especial e diferente, quando somos a puta da mesma merda a caminhar em círculos, até nos abrirem em cima do mármore gelado com aquela expressão de enfado, um centímetro a mais, um tom mais claro ou escuro, um coração mais atrofiado ou as costelas mais notórias, que diferença faz?

Pois é, nenhuma.

Queremos todos o mesmo.

Caminhamos todos para o mesmo sítio. Lá porque uns dão passos mais pesados ou caminham mais depressa, isso não os cunha de especiais.

Lá porque uma maçã é vermelha num cesto de verdes, não deixa de ser a puta de uma maçã que espera uma boca ou a podridão.

Talvez ajudasse um pouco, se se admitisse que somos todos feitos de carne e ossos.

Podes pôr uma bela coroa, encher os neurónios de Platão ou fazer questão de mostrar aquele diploma na parede mas continuas a ter costelas quebráveis e sangue que apodrece.

publicado por Ligeia Noire às 01:24
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