(…) Às vezes, crescemos tão afastados do tempo que imaginamos que as coisas ficam ali à nossa espera... Afinal, quando chegaram, o local já não existia, aliás, o local estava lá, apenas dedicado a outras lides. Apetrechado de publicidade a telemóveis, uma loja… Uma lojinha.
Bars come and go, that’s it.
Pena, nem sequer havia tido tempo de conhecer. Acabaram por parar num bar um pouco duvidoso. A noite tinha começado há um par de horas, não havia muitas pessoas no local, o que era óptimo. Sentaram-se a um canto ofuscado e ficaram ali a conversar. O bar até que era agradável. Não havia aquele hype da noite na cara dos que por ali abancavam e as bebidas não eram compostas por gelo e mariquices. Depois de um cigarro, L responde por entre o fumo:
-Sim, também gosto. Acreditas que nunca aqui tinha estado? Ena, ena eu que gosto destes esconderijos esqueci-me de os procurar nesta zona. É que, normalmente, esta área é mais turística que íntima e discreta.
-Sim, isto é realmente enigmático. De qualquer forma não me aventuraria nestes locais sem ser com algum nativo.
-Ah pois é, até porque te perderias.
-Muito engraçada… de qualquer forma vais ter de me trazer aqui mais vezes.
-Tu tens a desculpa do mau sentido geográfico mas eu nem sequer sei como cá vim parar.
-E esta música?
Gosto bastante, não reconheço mas parece-me uma mescla de Depeche mode com Dead Can Dance.
- E vem provavelmente das profundezas porque o som não se ouve propriamente bem.
-Pena, se fosse algo mais carnal até que ia dançar ali para o canto-escuro-que-supostamente-é-a-pista…
-ah ah ah não devias ter dito isso…
Passou-se algum tempo e o som das profundezas do sítio desconhecido descia-lhes pelos braços nus e pousava-lhes directamente nas mãos.
Assim se passou quase uma hora. Entre bebidas transparentes e sons quiméricos o mundo ficou lá fora.
A noite já ía bem crescida e as poucas pessoas que se encontravam a dançar já tinham deixado o bar. L, já cansada, regressou à mesa e bebeu uma garrafa de água quase de um trago. M, meio zonza, dirigiu-se à casa-de-banho.
O tempo é incontado e quando a luz chegar, toda a insuficiência vai estar no mesmo sítio à espera de ser vista porque, uma vez vista, é albergada na alma.
Durante os minutos enevoados na mesa, M ia tentando perceber se estava muito bêbada. Talvez a bebedeira não fosse propriamente a única causa. Se havia algum sentimento que ela prezava era a amizade. A amizade é aquele pendente de oiro que os pais nos oferecem e que nós nunca tiramos. Aquele cliché em que, já velhos, nos sentámos na cama e olhámos para o fio e de repente tudo pára. Realmente, as coisas distinguem-se por elas mesmas, não sei porque se perde tempo a questioná-las.
A porta do bar era realmente tenebrosa, cada vez que alguém entrava ela arrastava-se como se de uma senhora velha a queixar-se de anos de trabalho se tratasse. Era um pequeno grupo que acabava de chegar. Uma rapariga vistosa e altiva, um rapaz nos seus vintes e muitos com aparência de -não estou cá- e olha, olha, o nosso ilustre desconhecido no meio deles e desta vez, a nossa menina teve a certeza de ter sido vista. De facto, seria difícil não o ser… Estava com aquele ar de quem gostava de parecer indiferente mas realmente era só mesmo a vontade.
Enregelou.
Não se sabe se por ele a ter visto, se por ela ter percebido que ele estava ali e era uma pessoa. Mais duas raparigas vinham nesse grupo. A aparência era mais ou menos a mesma de todos eles. A idade era pouco perceptível não tinham mais de quarenta nem menos de vinte. O rapaz mais baixo trazia óculos escuros e todas as raparigas estavam com ar altaneiro e carne de porcelana. A bem dizer e sem querer correr o risco de chover no molhado o nosso senhor era diferente deles. Para quê alongarmo-nos nos detalhes que já atrás descrevemos?
Era raro, apenas, e só. L estava ao balcão a pedir uma água e a pagar a conta, M queria pagar a sua, detestava que L se antecipasse mas o gelo dos pés era espesso e mais espesso se tornou quando viu a amiga a cumprimentar o pequeno grupo de desconhecidos que acabava de a congelar. Quando regressou à mesa, M olhou-a com pasmo:
-Conhecê-los?
-Conheço o de cabelo preto e a rapariga de cabelos louros, os outros conheço de vista. Da noite de cá. O gajo do lenço nunca vi. (…) Estranho nunca o ter visto. Tenho a certeza de que se ele andasse pelos sítios da zona, não passaria despercebido. Nesta fauna tudo se confunde quando se quer ser diferente.
-Eu já o vi.
-Ah então conheces o ilustre e ainda dizes que nada de novo se passa por lá.
-Não é caso para tanto. Eu não o conheço, apenas o vi algumas vezes.
-Espera lá, algumas vezes?
-Eu conto mas se calhar é melhor irmos andando, já viste as horas?
-Foda-se é mesmo tarde e eu a pensar que ainda dava para te levar a outro sítio…
-Esquece lá isso.
O grupo estava acomodado num recanto almofadado e conversava. O cavalheiro de que as amigas se interpelavam estava entre tabaco e chá a admirar a fauna e de quando em vez entrava na conversa dos que o acompanhavam. Quando M se levantou, não pôde evitar que os olhos lhe fugissem para ele. Estranhamente, ele não desviou olhar e esboçou um sorriso mordaz. Inspirou de um trago o último fôlego do cigarro e voltou para a conversa.
Elas já estavam a caminho de casa.
-Foi um pouco estranho. Sabes que por lá nunca costumo ver ninguém muito diferente. Quer dizer, realmente diferente. E os que se destacam, já os conheço de vista. Não que não haja pessoas interessantes na comum aparência, mas não lhes ando a perguntar...
Sabes como a nossa forma exterior é uma extensão de nós mesmos. Como diz um escritor, que agora não recordo o nome, o ideal seria o interior ser completamente respeitado pelo exterior ou algo do género… Bom, um dia fui até à loja de discos e vi-o. Eu estava a subir as escadas e ele descia. Olhei para ele, como olharia fosse para quem fosse e fiquei perplexa porque não esperava ver alguém assim por ali. Não que fosse bizarro mas acho que quando estamos despercebidos a desviarmo-nos porque esperamos ver uma senhora rabugenta e cheia de compras e depois... enfim… Ele olhou também, mas acho que não fez muito caso. Estranhei porque ele era fortuito, ele continuou porque eu era mais uma (…).
Eh pá... acho que estamos a dar demasiada importância a esta treta mas ok. Quando cheguei ao cimo das escadas ainda pensei em esperar para ver para onde ele ia mas ganhei juízo e fui ler para aquele jardim. Fiquei lá umas duas horas. Quando o sol se começou a pôr levantei-me e, de repente, vejo-o ao fundo da rua. Era ele, notoriamente. Distingui-lhe mais uns pormenores e fiquei a vê-lo desaparecer à medida que virava a esquina.
-Que cinematográfico.
-Extremamente. Confesso que não quis pensar muito no assunto, mas dei por mim a ir ao mesmo sítio no dia seguinte mas sem sucesso. Não voltei lá, até umas semanas depois, para ler, como sempre. No entanto, não sei por que razão ergo a vista e volto a vê-lo mas desta vez dirigia-se a um banco de pedra a dois ou três metros de onde eu estava. Fiquei completamente embasbacada e senti-me corar como fogo e tentei esconder o rosto no livro e deixar o cabelo tapar-me um pouco. Apercebi-me de que ele se tinha sentado a fumar. Era realmente muito bonito e confesso que fiquei a contemplá-lo por segundos. Contudo, não parecia ligar muito ao que se passava à sua volta. Pus os auscultadores e comecei a ler. Quando ergui os olhos de novo já ele estava a dirigir-se à mesma rua de que te falei e foi-se (…).
-Sim, que é muito altaneiro também reparei. Que se foda. Deixemos o rio à vontade. Precisas é da Babilónia.
-É verdade. Fodas, drogas e rock & roll.
VI
A semana tinha começado desgraçadamente. O dia estava demasiado quente, o estômago ardia e tinha recebido uma cliente chata como o caralho, a gaja desarrumou três estantes e ainda saiu a reclamar. O que a deixou ainda pior.
Mas será que as putas andam aos pares? Pergunta existencial sem resposta.
Somos obrigados a fingir que sabemos tudo.
Somos obrigados a viver, somos obrigados a ser quatro pessoas.
A decisão foi tomada depois de dias a pensar no possível futuro e, também, no esforço que estava disposta a despender. E o resultado foi tão minúsculo que a resposta desceu de pára-quedas.
Não sabia se o futuro era mais negro que o passado mas sabia que ambos eram escuros. Claro que o emprego não era eterno mas pelo menos era livre de pressões diárias e, se havia algo que M tinha assente, era o facto de que ambição e objectivos nunca fizeram parte do seu dicionário.
As metas a suster eram as contas pagas.
Às vezes, tinha a convicção de que o mundo seria engolido a qualquer instante e de que se veria livre das correntes ou então, de que tinha sujado a sua vida com tinta-da-china e, a menos que recomeçasse com uma nova alma, jamais poderia pensar em futuro.
Nada de muito diferente se havia passado, M tentava entender por que motivo, se não era ambiciosa e se o futuro lhe estava inquinado, ela se sentia tão imperfeita, vazia, vã... Seria ânsia de chegar ao próximo receptáculo?
A moderna obsessão pela individualidade é assustadora. Já ninguém se contenta em ser normal e razoável, todos são assoberbados e desejosos de ouvidos e olhos que os oiçam e bajulem... mas, não é errado generalizar? É?
Tanta vontade de se ser especial e diferente, quando somos a puta da mesma merda a caminhar em círculos, até nos abrirem em cima do mármore gelado com aquela expressão de enfado, um centímetro a mais, um tom mais claro ou escuro, um coração mais atrofiado ou as costelas mais notórias, que diferença faz?
Pois é, nenhuma.
Queremos todos o mesmo.
Caminhamos todos para o mesmo sítio. Lá porque uns dão passos mais pesados ou caminham mais depressa, isso não os cunha de especiais.
Lá porque uma maçã é vermelha num cesto de verdes, não deixa de ser a puta de uma maçã que espera uma boca ou a podridão.
Talvez ajudasse um pouco, se se admitisse que somos todos feitos de carne e ossos.
Podes pôr uma bela coroa, encher os neurónios de Platão ou fazer questão de mostrar aquele diploma na parede mas continuas a ter costelas quebráveis e sangue que apodrece.