O que há na sala 101?
Tu sabes o que há na sala 101. Toda a gente sabe.
Ouviram-se botas lá fora. As entranhas de Winston contraíram-se.
Muito em breve, talvez já.
Esse barulho de botas anunciava ter chegado a sua vez.
A porta abriu-se, o oficial de rosto frio apontou para o vulto na penumbra.
Sala 101 proferiu.
O homem lá foi, o rosto vagamente perturbado mas sem compreender o que o esperava.
Não sabia onde estava, impossível saber ao certo. Tinham-no fechado numa cela de tecto alto, sem janelas, com paredes de azulejos brancos, brilhantes.
Lâmpadas invisíveis inundavam-na de uma luz fria e, ouvia-se um zumbido ininterrupto. Um banco com apenas, largura suficiente para uma pessoa se sentar, corria à volta das paredes.
Diante da porta uma sanita sem tampo. Quatro tele-ecrãs, um em cada parede. Sentia uma dor surda na barriga e uma fome corrosiva, doentia...
Não sabia e provavelmente nunca saberia, que horas eram ou há quanto tempo tinha sido preso.
A porta voltou a abrir-se, o oficial apontou para o homem esquelético:
Sala 101.
O homem atirou-se para o chão de joelhos num pânico indescritível. O seu rosto já muito pálido tornou-se de uma tal cor que não se julgaria num rosto humano, verde.
Matem-me! Degolem os meus três filhos à minha frente mas para essa sala é que não.
Sala 101, disse o oficial.
Naquele lugar ninguém conseguia sentir nada, senão a dor e a antevisão da dor. Nunca se podia desejar, fosse porque motivo fosse, um acréscimo de dor.
Da dor só havia uma coisa a desejar, que parasse.
Nada no mundo era tão terrível como a dor física.
Perante a dor não há heróis, não há heróis. Pensou ele, enquanto se contorcia no chão com terríveis dores.
Havemos de te esmagar a tal ponto que tudo morrerá dentro de ti, ficarás oco.
Havemos de te espremer até ao vazio e depois encherte-e-mos com a nossa própria substância e deves desistir de pensar que a posteridade te vai vingar, a posteridade jamais ouvirá falar de ti.
Vamos suprimir-te totalmente do curso da História.
Vamos transformar-te em gás e lançar-te na atmosfera.
Nada restará de ti, nem nome, nem qualquer recordação. Serás aniquilado no passado e no futuro.
Nunca terás existido.
Perguntaste-me uma vez o que havia na sala 101, disse-te que já sabias a resposta.
Toda a gente sabe o que há na sala 101.
É o pior do Mundo e o pior do Mundo varia de indivíduo para indivíduo.
Umas vezes é ser-se sepultado vivo, outras a morte pelo fogo ou milhentas outras formas de morte e sofrimento indizível.
Só por si, a dor nem sempre basta, mas para toda a gente existe qualquer coisa intolerável, qualquer coisa que não se pode de modo nenhum suportar…
Um Homem afirma o seu poder sobre o outro fazendo-o sofrer, a obediência não basta.
O poder consiste em infligir dor e humilhação.
O poder consiste em desagregar a mente humana para reconstituir numa forma nova, a forma que entendermos dar-lhe.
Queres uma imagem do futuro?
Pensa numa bota a pisar o rosto humano, para sempre.
in 1984 de George Orwell
Post Scriptum: texto apanhado de ouvido da narração de Jorge Carnaxide no programa "Argonauta" da Antena 2.