Tive de parar o filme, várias vezes, para respirar.
Medo puro, duro, real e numa esquina, casa, mundo perto de nós.
Sufocante, a noite.
A noite, quando temos medo, dura tempo incontado.
A casa grande na floresta, num país que ainda permanece tão recôndito quanto nos tempos do Drácula.
O telefone toca e… como descrever… são uma matilha, não têm leis, nem a moral que os idiotas das escolinhas acham que existe lá fora, às vezes, pergunto-me se vivemos no mesmo mundo...
Gosto muito de cinema de terror, gosto muito desta vaga de cinema extremo mas, a diferença, é que quando a ameaça é sabida como real, quando sucedeu, quando a vemos nas notícias a espancar velhos ou transexuais, ou a matar casais, o caso muda de figura.
Nunca apreciei bandos, tenho pavor de me cruzar com eles.
A diferença é que este mundo não tem veludos, nem anjos, nem risos, os problemas não são feitos de desamores e futuro, e diplomas e livros e sofrimentos de rendas e eyeliner, este sítio tem sangue, tem fome, tem cães humanos cheios de seiva.
Numa entrevista, que vi hoje, dos anos noventa, a Diamanda dizia trazer sempre com ela um revólver.
Uma vez que, não acreditava que se podia descer uma rua em Nova Iorque, incólume.
A menos que se parecesse invisível ou que não se saísse da norma porque há sempre algo que pode despoletar uma investida.
É por isso que, às vezes, rio sozinha quando me sento a uma mesa de quatro pernas a ouvir coisas dos livros, com gente à minha volta, parece-me tudo tão caricato.
É como se o mundo estivesse hipotérmico e nós saíssemos à rua de lingerie.
Tenho medo, claro que tenho medo, escrevo aqui muitas coisas mas aquelas que realmente me assustam, nem sequer tenho a audácia de lhes pôr letras.
E na cabeça funciona o: "não penses nisso, não penses nisso".
Não sei lidar com o medo, o medo assusta-me, o medo…
Vou contar uma história que me aconteceu há vários anos.
Na minha aldeia, quando eu era mais pequena, era costume mungir as vacas e levar o leite a uma leitaria.
Dava uns trocos e as vacas são muito bonitas.
As minhas eram turinas, o que eleva ainda mais a cena.
Às vezes, era eu que pegava na cântara às costas e levava o leite com a minha prima até ao destino, o qual não ficava nada perto, mas era fixe.
No Inverno, como escurecia muito cedo, tentávamos andar mais depressa mas a noite encontrava-nos sempre.
Um dia, quando vínhamos a descer o caminho já perto de casa, uma sombra moveu-se por trás de nos e falou qualquer coisa que agora não me lembro.
Congelei da cabeça aos pés e o coração esganou-se, senti tanto medo que não conseguia respirar e pareceu tempo infindável mas foram apenas segundos até me aperceber que a minha prima estava a cumprimentar a dita figura e que, na verdade, era um vizinho que voltava para casa depois de ter estado a roçar mato para as cortes.
O alívio foi tão mas tão grande que senti uma felicidade pura como nunca julguei ser possível.
Não sei se foi a primeira vez que senti medo mas sei que ficou gravado num neurónio qualquer.
No entanto, a noite, para mim, é como heroína, temo-a e amo-a, é mãe de todos e não excomunga ninguém.
E mesmo sendo uma temente do medo, não sou refém dele, aliás, uma das coisas que mais gosto é de me sentar à lareira a ouvir histórias, lendas, folclore ou seja lá o que for que os mais velhos têm para contar.
É delicioso.
Há uma história que o meu pai volta e meia conta e que me assusta sempre.
O meu pai sempre trabalhou longe e a maior parte das vezes vem à noite com o saco às costas.
Mais uma vez, a noite foi mãe e o Inverno pai.
E, não de propósito, moramos no monte, bosque, mato, floresta, com meia dúzia de casas, agora, a maior parte desabitadas.
Vinha ele de regresso do trabalho, era fim-de-semana, e no caminho vê ao fundo um vulto e, conforme o Jonathan Harker se refere às noivas como sendo senhoras pelos trajes que envergavam, ele pensou ser um homem pelo alto chapéu, casaco comprido e postura.
Como o meu pai é o meu oposto, destemido, nada de estranho lhe ocorreu e ao passar pelo dito saudou-o com um "boa noite" mas não ouviu resposta e nunca lhe chegou a ver o rosto, seguiu o caminho.
Quando chegou a um carreiro mais abaixo, olhou para o local e, o "homem", estava estacado no mesmo sítio.
Nada mais sucedeu.
Na minha terra, há uma superstição em relação a saudações, diz-se que, à noite, nunca se deve saudar ninguém a menos que se conheça.
O meu pai não vai nisso mas, até hoje, lhe ficou na memória o estranho vulto sem rosto que o olhava do alto do seu chapéu negro e casaco comprido.
Há muitas preciosidades destas que guardo no bolso.
E, embora este filme nada tenha que ver com o sobrenatural, que aprecio, invoca o medo, o medo da realidade, o medo do que sabemos que acontece e que tem pernas e mãos.
Sufoca, sufoca e sufoca.
E que barulho era aquele?
Que brinquedo era aquele?
E aqueles chamamentos animalescos e aquele autocarro que parou e que prosseguiu como prossegue a voz que ouço quando me sento na mesa de quatro pernas, a árvore que morre na floresta.
Ainda ontem me diziam que o pandemónio está aqui e agora.
E que, quando se começarem a deglutir uns aos outros, a diferença estará naqueles que tiverem dinheiro para construir muros altos ou então um frasquinho de salvação em direcção à luz.