Tudo o que tem término, tudo o que é feito de fim, é bonito.
A vida é feia, com os seus acordes órfãos de maestro conhecido, dançamos descalços e em valas.
Já outrora falei da continuidade e do fim, tudo o que se prolonga, tudo o que tem movimento, tudo o que muta está condenado ao fracasso, à destruição.
O que é.
O que acontece.
O que termina, o que não nasce, nem cresce, continuará inatingível e eterno, no auge do seu valor.
Ô Satan, prends pitié de ma longue misère!
Acordei aterrorizada e olhei para o mostrador, passava um pouco das cinco da madrugada.
A respiração estava profunda, as unhas enterravam-se-me nas conchas das mãos e os olhos apertavam-se-me como botões novos.
Sim, mais um pesadelo.
Mais um bicho que se sentou nas minhas costelas.
Não me recordo muito bem do início mas lembro-me perfeitamente do sítio.
A ponte por cima da auto-estrada, com a serra ao fundo.
Seríamos uns cinco e não sei quem éramos, nem sei se eu estava lá, ou se pairava… como sempre.
Subimos uns degraus cavados na terra de uma encosta e estávamos, agora, na estrada.
Um deles falou e reparei que era uma mulher que trajava um manto com capuz.
No entanto, não me questionei porque nunca lhe vislumbrara o rosto.
Era como se fosse natural vê-la assim…
"Não sou religiosa."
Acho que foi isto que a ouvi dizer.
E não sei se continuámos o caminho ou se aconteceu logo.
A figura baixou o capuz e fiquei aterrorizada porque percebi que era Deus.
Não me perguntes porquê, nem como o sei mas é aquele mundo próprio dos sonhos, onde sabemos quem somos por indução.
Cá fora precisamos de cores, cheiros e feições, do outro lado, são sensações apenas e só.
O que sucedeu a seguir foi tão rápido, progressivo e pesado que o sonho se fechou para que eu pudesse acordar.
Nas mãos da figura estava uma longa foice que empunhou bem alto e com a qual colheu todos os corpos que ali estavam.
Os meus sonhos raramente têm cor.
Posso quase lembrar-me de todos os sonhos a que a minha cabeça conferiu cor, quase sempre vermelho.
Flores, lábios…
Mas, neste, a cada corte o sangue abria-se em leque, tão vermelho como cerejas, tão vermelho como sangue ainda quente e ainda vivo.
Se eu estava ali ou se estava apenas como espectadora, não sei, o que leva a que desconheça se também eu fui morta.
Não posso dizer que os pesadelos voltaram porque acho que jamais se foram.
Ouvi um médico dizer que sonhamos, invariavelmente, todos os dias, mas que nem sempre nos lembrámos.