“We are like roses that have never bothered to bloom when we should have bloomed and it is as if the sun has become disgusted with waiting”.

27
Abr 12


Gosto de ir à varanda durante a noite, é tudo tão... inofensivo.

Quando sinto aquele impulso para escrever, o meu estômago transforma-se num borralho e preciso encontrar um canto escuro e solitário para onde possa espalhar todas estas brasas.

Não estava apaixonada mas gostava muito dos passeios que dávamos pelas ruas.

Tudo era tão sem tempo, belo, silencioso, calmo, fantasmagórico: o poder da noite.

Eu, por certo, lhe parecia mais bonita, mais poetizada, ele parecia-me o mesmo, o Cavaleiro-das-Terras-Brancas.

Agora, que olho para a rua deserta e para as rosas em flor, lembro-me de como me dava saúde conversar com ele.

Naquelas noites, foram sempre noites, tudo se tornava mais nítido, o meu olho esquerdo não conspirava em teias-de-aranha contra mim, as pessoas que passavam eram fantasmas, as casas eram ruínas abandonadas e riamos muito, tanto que pareceríamos, por certo, bem-aventurados.

Nunca me foram ofertadas tantas rosas, acho que só me ofereceram rosas uma vez, não me lembro do nome do rapaz, sei que era francês e amanteigado e da rosa...

Ah!

Lembro-me bem, escarlate e deliciosa como cerejas.

À parte disso, quem me oferece flores, frequentemente, é a minha mãe, que em si é uma flor (se não fosse verdade, pareceria ridículo escrevê-lo), rosas, dálias, japoneiras, copinhos… enfim, leva-mas ao quarto quando riem ao sol, quando não quero comer de manhã ou quando estou atafulhada nos livros.

E ele… ele ofereceu-me várias.

Ele, que me conheceu num corredor longo e que, curiosamente, me voltou a encontrar numa sala branca.

Foi do vestido, disse ele e do cabelo concluiu.

Uma das coisas boas de se vestir o que se é, é não perdermos tempo precioso separando o trigo do joio.

Antes mesmo de o cavalheiro abrir a boca, já lhe sabia muitas coisas e ele de mim, por certo.

E eu, que até gosto de brincar, desta vez recuei passos largos, como um caranguejo vermelho.

Os cabelos longos de espigas e a claridade de cetim dos olhos foram costurando e costurando rendas que eu não queria, de forma nenhuma, estragar por vestir.

E a lua, que brilhou tantas vezes por entre todas aquelas árvores ou as cascas que esmigalhava debaixo dos meus sapatos e também o vento que me secava o cabelo, criavam cenários favoráveis a que as vestisse.

Não eram apenas as mãos alvas, as cúmplices das rosas que ele me escondia atrás das costas, eram também os lábios que declamavam poemas enquanto caminhávamos.

Falávamos muito, falávamos de muita coisa, de assuntos mundanos, da terra dele, da minha, de coisas belas e também da "dor de pensar", do sono para sempre e da inutilidade de existir.

Um dia, também lhe falei de ti, não lhe disse que eras tu, assim como se fosse -tu cá, tu lá- mas falei-lhe de ti e ele sorriu como se sorri das estórias de príncipes e princesas, acho que era tarde, claro que era tarde, e chovia chuva fria.

Pelo meio de todas aquelas frases minhas, que não posso escrever, sorrateiramente e, depois, majestosamente, um gato, de luxuriante pelagem negra, salta do muro e caminha pelo átrio à nossa frente, desce as escadas e desaparece pelo jardim.

Eu sorri de olhos e boca, como sorrimos das existências secretas, da flor roxa e bravia que cresce no monte, longe de tudo mas que não deixa de ser flor roxa que cresce no monte.

Meu bom amigo, meu querido, jamais me senti tão lisonjeada e assaz cortejada, temo que me tenhas vestido, tu mesmo, a renda que teceste.


publicado por Ligeia Noire às 00:35

19
Mai 11

VII

 

Gotinhas pequeninas, em flores pequeninas de arcos floridas.

Para a frente para trás, devagar, recortava a noite em duas.

-Credo, assustaste-me!

-Ah espera, isto é o teu jardim?

-Não, que idiotia.

-O que significa que também posso estar aqui mesmo que te assuste?

-Pois, parece que sim.

-És mesmo menina que ainda cora.

-Não digas?

E, ele, ficou lá, junto das flores pequeninas a enchê-las de fumo e a matar-lhes o orvalho.

Há uma ou duas noites estavam sentados frente a uma mesa redonda de carvalho, num sítio qualquer, de uma cidade qualquer, as raparigas de que falei anteriormente, um homem novo e ele.

Bebia chá e sorria quando lhe faziam perguntas, como se avisasse que nunca iria responder ou, pelo menos, não com verdades terrenas.

Esse homem que, na semana anterior tinha entrado e assustado a nossa menina, o ilustre desconhecido, como lhe chamou L.

Agora já se conheciam como pessoas que se conhecem nessas mesas e cadeiras envoltas em fumo.

Por entre conversas emaranhadas e fugas para jardins de flores pequeninas.

Em abono da verdade, ela desiludiu-se com este homem com quem tinha cruzado as escadas.

Pobre menina pequenina que está habituada a manter as pessoas afastadas para as fazer perfeitas.

Imaginava-o um senhor alto por dentro e por fora mas, se lhe perguntássemos agora qual era a sua dimensão, provavelmente diria que era do tamanho das não-responsabilidades.

Foi L que a voltou a trazer cá fora, ela que a tirou do ouriço para falar palavras como as pessoas normais mas como poderia a nossa menina ser normal no meio de homens e mulheres que falavam francês e liam livros grandes cheios de homens e livres de Deus?

Cheios de espinhos que não picam...

Esta pobre rapariga, que tem um gato selvático dentro dos olhos, já não tinha tempo para ter medo, nem paciência para ser brusca.

Ficava ali, na cadeira dura, a olhar para eles e a pensar que eram pessoas e que, até aí, nada poderia piorar.

A rapariga que tinha olhos azuis e pele de pessoa nobre que nunca se deixou acariciar demasiado pelo sol, disse:

-Falas pouco… não gostas do livro?

-Nunca o li.

-Mas devias, é delicioso, quase que te ensina o sentido de todas as coisas.

-Pois, mas eu não quero que me ensinem o sentido de nada ou não teria nascido com cinco.

-Ui que ela não fala mas morde. Disse ele, o ilustre desconhecido.

E sorriu como sorriem os sardões se o pudessem fazer, devagar e com gosto.

A rapariga de olhos azuis riu com ele.

M olhou de olhos acres e foi ver se chovia.

Ele era sempre mordaz e ela, que mordaz era frequentemente, viu-se mais rápida na agressividade e no ímpeto.

O que fazia com que o sujeito se divertisse, ainda mais, como se estivesse a jogar num qualquer casino obscuro.

Ela gostava muito do que ele escrevia… ele escrevia, e ela descobriu. Não era difícil, uma vez que era bastante considerado no meio em que se movia, toda a gente o conhecia. Era comum ver catraias de corpos produzidos a olharem-no como o aprendiz olha o mestre, se bem que talvez não quisessem aprender nada de impalpável…

Mulheres de todas as idades que se lhe conheciam como amigas, ex-amantes ou admiradoras, homens que o detestavam e outros que ansiavam por suplantá-lo, como se estivéssemos numa qualquer conquista napoleónica.

Tinha um ou dois amigos com quem o podíamos ver regularmente mas, a maior parte das vezes, ninguém sabia do seu paradeiro.

Havia histórias que se ouviam... algumas possivelmente verdadeiras, outras acrescentavam-lhe lustro à fama de insubmisso, promíscuo, arrogante, egocêntrico, sedutor e enfim, o velho cliché...

Se bem que poderia provocar ambos os estados, em ambos os sexos e em todas as idades.

Dizia-se que tinha quarenta mas poucos acreditavam, pois, a aparência abonava uma juventude controlada. Constava-se que era órfão e de que teria sido educado num mosteiro por um excêntrico monge, de onde partiu para terras estrangeiras. Consta-se, também, que seria seguidor de uma religião antiquíssima e estranha, apreciador de drogas e homem de inúmeras paixões mas nenhuma que o fizesse abandonar os pardos caminhos por onde se movia e as estranhas coisas que se dizia fazer.

Conviveu com hippies, punks e todos os que se lhe seguiram, viu morrerem-lhe amigos e nunca conheceu familiares.

Educado e extremamente inteligente, tinha como profissão conhecida qualquer coisa que envolvia línguas, mas os mais novos e recentes no meio chamavam-lhe libertino.

Não era simpático, nem condescendente, nem emotivo, nem presente.

Às vezes, ia beber uma cerveja ou um café e fumar um cigarro ao bar do costume mas ficava na mesa redonda de carvalho a ouvir os conhecidos falarem das últimas façanhas do governo ou das novas tendências literárias, como se aquilo não fosse problema dele, como se depois de sair dali fosse para o mundo ao lado.

Raramente se irritava e, era tão subtilmente mordaz com os moços que o abordavam que só ele se ria.

Era toda esta a fama de que a rapariga de quem aqui se conta a história ouviu falar e à qual ela própria acrescentou uns pozinhos ao ler-lhe os escritos. Um dândi que se perdeu da plêiade libertina e vivia por ali…

No entanto, mesmo tendo conhecido o sujeito ignorante do seu rol de propriedades, aos olhos de uns, admiráveis e aos de outros, pouco ortodoxas, já o achava mais um que demandava coroa e joelho no chão.

Ele era como aqueles cogumelos venenosos que só de aparência nos abatem as defesas… Os cabelos castanho-avermelhados, como se a lava violasse a terra, olhos verdes que contavam tudo mas em língua desconhecida, lábios rosados, como se de uma mulher se tratasse, rosto claro e barba de mosqueteiro, porte de cavalheiro que fica bem a cavalo, unhas ligeiramente compridas e nuas, sempre de negro e sempre de botas.

Foi esta a figura que ela viu nas escadas e de quem fez o esquisso na cabeça (mas esqueceu-se de que nunca soube desenhar, falta-lhe o engenho e a arte).

Ela não gostava muito de ir à taberna mas como L trabalhava lá, poupar e regressar a casa era mais fácil e, claro, a música era quase sempre melhor que as demais doçarias.

-Olá, logo vou buscar-te ou vens cá ter?

-Quê? Eu tenho mais que fazer, não vou para aí ouvir as palestras daqueles gajos, fico bem em casa.

-Estás a falar a sério? Vais perder o concerto? Só lá foste duas vezes e nunca mais lá apareceste e eles não estão lá todos os fins-de-semana, aliás, o gajo raramente aparece, tu é que tiveste azar nos dias em que foste… se bem que não percebo… ele é extremamente educado… vá anda…

-Ó, eu não estou a limitar nada por causa deles é só que... tu sabes... és responsável ali, não te quero atrapalhar e eles convidam-me para me sentar e eu não vou dizer que não e ficar ao balcão junto dos "pescadores" mas, depois, sinto-me desconfortável e ridícula, sei lá…

-Deixa de ser adolescente revoltada e anda, bebes uns copos e se não curtires o ambiente podes bazar e ficas na minha casa que é mais perto.

-Ó, está bem… sou tão fácil de convencer...

-Isso, jantamos juntas. Ao entardecer apareço aí.

 "Uma rapariga tão crescida e sempre cheia de reticências", pensava ao pousar o telemóvel, enquanto olhava da janela para um gato a atravessar a rua e a subir a um muro... "Se queres vais e o resto não interessa, se fosses ainda uma adolescente revoltada como ela disse, seria muito mais fácil, já que eles não pensam demasiado."

Ao chegar ao carro da amiga, era visível que tinha deixado a sua acidez mais na alma do que no corpo, a sua indumentaria estava mais acetinada e a vontade mais premente.

Esta noite seria concorrida, o conhecido grupo neoclássico francês iria dar um concerto e seria mais do que certo que a taberna iria encher.

Enquanto a amiga foi para a sala ao lado, M sentou-se nas filas do meio, os violinos deram entrada, logo seguidos do piano e do violoncelo, a música ecoava pelas mesas redondas e pelas cadeiras agrestes. Não havia barulho algum, todos estavam serenos e atentos como se ali se estivesse a consagrar a ceia primordial.

No final, todos se levantaram e pediram encore, ao que a porta-voz do quinteto acedeu de modo sorridente, desde a Tocata e fuga, à Enjoy the silence, todos se deleitaram com as novas formas que o som ia tomando nos seus sentidos e, assim, se passou uma hora e meia.

A amiga ficou a conversar com a rapariga do violino e a nossa menina foi para o jardim sentar-se no baloiço do costume.

Para a frente para trás, devagar recortava a noite em duas, fechou os olhos.

"A música é a coisa mais bela do mundo, a seguir às flores", pensava ela mas as flores não cheiram a tabaco e tabaco era o perfume que lhe ia caindo no nariz.

Quando acordou viu que o gajo estava sentado no muro de pernas cruzadas, o casaco estava no banco de pedra e os olhos no movimento lá ao fundo.

Ela não disse nada mas ficou assustada por não o ter ouvido e se fosse um assaltante? Podia ter-lhe delapidado a garganta antes que pudesse dizer um ai que fosse.

-Pensei que a cidade grande tinha assustado a menina de vez…

-parece que ainda não, mas vai mantendo as esperanças.

-Sempre. Então, não era para já teres ido embora, como se fosses demasiado especial e rebelde.

-É por isso que estou cá fora. Bem, na verdade estou a ouvir o pior dos enfatuados mas não se pode ter tudo…

-Menina, moça espirituosa, já vi que me deram a conhecer a vossa senhoria em livro aberto, tão gentis estas criaturas! Jogo injusto, mal sabem os demais que a pior das egocêntricas gosta de flores e anda de baloiço, mas não faz fama e assim nada se sabe dela.

-Não há nada para saber.

-Ah pois, é isso, desde que nasceste, o teu quadro permanece em branco, deve ser triste não o ter tingido de sangue de batalhas ou do dourado do prazer.

-É assim que consegues com que as meninas bem vestidas ali dentro se ajoelhem perante a tua divina majestade?

- Exactamente. Uma vez que sabes tudo sobre mim, deverias elucidar-me, a minha mente já não é o que era.

-Pois, se calhar é isso que te move.

-Ó minha cara, poderia ter a amabilidade de continuar este joguinho de quem quer foder quem mas já não tenho paciência, talvez aches que fazes parte de um qualquer conto desses teus lúgubres escritores, em que o revolucionário e belo cavaleiro se deixa dominar pela inocente e doce donzela, mas nem tu és doce ou inocente ou sequer fazes o meu género e nem eu tenho paciência para me rebelar ou para andar a cavalo… se quiser fodas ei-las, e não preciso de inventar conversas amanteigadas, não sou dramaturgo e detesto novelas.

Aqui não há belezas, nem floreados, cada um vive a vida como pode e tu, com certeza, já tens idade e discernimento suficientes para usar de sensatez naquilo que te dizem e naquilo que pensas ser verdade e, agora, sê uma menina bonita e vai a correr para casa escrever um poema triste e magoado contra o mundo que não te compreende.

Dito isto acabou o cigarro e fez aquele seu olhar de língua estrangeira acompanhado pelo sorriso de sardão, ficando a olhar para ela.

O rosto da rapariga corou demasiado e a verdade é que foi mesmo embora, não a correr e não porque não lhe quisesse dar uma chapada ou gritar-lhe de que não era assim mas porque estava triste e lhe apetecia chorar.

"Filho da puta trinta vezes sete!

Nunca lhe disse nada de especial, apenas reajo ao sarcasmo e à forma desdenhosa com que ele me trata.

Bem, se calhar sou mesmo assim… é isso, sou uma idiota que ainda pensa que pode mudar o mundo, sou ainda mais triste do que aquelas gaiatas espartilhadas em demasia e de lábios vermelhos que se bamboleiam no átrio".

O cavalheiro ficou ainda um bom bocado a olhar para o vazio e a acabar o segundo cigarro.

Depois, como se tivesse chegado ali apenas há um instante, foi cumprimentar os conhecidos e ficou a conversar, alegremente, com uma mulher de franja negra.

Se desta vez a menina foi cheia de vontade de olhar o mundo de frente e de escapar um bocado à realidade, o tiro saiu-lhe pela culatra.

Foi a realidade que se lhe desaguou olhos adentro.

Esta rapariga à espera de um anti-herói para lhe conquistar a alma parece uma história bem bonita mas é pena que sobre ela também não haja rumores, ou saber-se-ia que não é mais do que um farrapo feio e bolorento, cheio de alvéolos e vermes com os quais já se habituou a conviver.

publicado por Ligeia Noire às 20:25
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01
Nov 10


(…) Às vezes, crescemos tão afastados do tempo que imaginamos que as coisas ficam ali à nossa espera... Afinal, quando chegaram, o local já não existia, aliás, o local estava lá, apenas dedicado a outras lides. Apetrechado de publicidade a telemóveis, uma loja… Uma lojinha.

 

Bars come and go, that’s it.

 

Pena, nem sequer havia tido tempo de conhecer. Acabaram por parar num bar um pouco duvidoso. A noite tinha começado há um par de horas, não havia muitas pessoas no local, o que era óptimo. Sentaram-se a um canto ofuscado e ficaram ali a conversar. O bar até que era agradável. Não havia aquele hype da noite na cara dos que por ali abancavam e as bebidas não eram compostas por gelo e mariquices. Depois de um cigarro, L responde por entre o fumo:

-Sim, também gosto. Acreditas que nunca aqui tinha estado? Ena, ena eu que gosto destes esconderijos esqueci-me de os procurar nesta zona. É que, normalmente, esta área é mais turística que íntima e discreta.

-Sim, isto é realmente enigmático. De qualquer forma não me aventuraria nestes locais sem ser com algum nativo.

-Ah pois é, até porque te perderias.

-Muito engraçada… de qualquer forma vais ter de me trazer aqui mais vezes.

-Tu tens a desculpa do mau sentido geográfico mas eu nem sequer sei como cá vim parar.

-E esta música?

Gosto bastante, não reconheço mas parece-me uma mescla de Depeche mode com Dead Can Dance.

- E vem provavelmente das profundezas porque o som não se ouve propriamente bem.

-Pena, se fosse algo mais carnal até que ia dançar ali para o canto-escuro-que-supostamente-é-a-pista…

-ah ah ah não devias ter dito isso…

Passou-se algum tempo e o som das profundezas do sítio desconhecido descia-lhes pelos braços nus e pousava-lhes directamente nas mãos.

Assim se passou quase uma hora. Entre bebidas transparentes e sons quiméricos o mundo ficou lá fora.

A noite já ía bem crescida e as poucas pessoas que se encontravam a dançar já tinham deixado o bar. L, já cansada, regressou à mesa e bebeu uma garrafa de água quase de um trago. M, meio zonza, dirigiu-se à casa-de-banho.

O tempo é incontado e quando a luz chegar, toda a insuficiência vai estar no mesmo sítio à espera de ser vista porque, uma vez vista, é albergada na alma.

Durante os minutos enevoados na mesa, M ia tentando perceber se estava muito bêbada. Talvez a bebedeira não fosse propriamente a única causa. Se havia algum sentimento que ela prezava era a amizade. A amizade é aquele pendente de oiro que os pais nos oferecem e que nós nunca tiramos. Aquele cliché em que, já velhos, nos sentámos na cama e olhámos para o fio e de repente tudo pára. Realmente, as coisas distinguem-se por elas mesmas, não sei porque se perde tempo a questioná-las.

 A porta do bar era realmente tenebrosa, cada vez que alguém entrava ela arrastava-se como se de uma senhora velha a queixar-se de anos de trabalho se tratasse. Era um pequeno grupo que acabava de chegar. Uma rapariga vistosa e altiva, um rapaz nos seus vintes e muitos com aparência de -não estou cá- e olha, olha, o nosso ilustre desconhecido no meio deles e desta vez, a nossa menina teve a certeza de ter sido vista. De facto, seria difícil não o ser… Estava com aquele ar de quem gostava de parecer indiferente mas realmente era só mesmo a vontade.

Enregelou.

Não se sabe se por ele a ter visto, se por ela ter percebido que ele estava ali e era uma pessoa. Mais duas raparigas vinham nesse grupo. A aparência era mais ou menos a mesma de todos eles. A idade era pouco perceptível não tinham mais de quarenta nem menos de vinte. O rapaz mais baixo trazia óculos escuros e todas as raparigas estavam com ar altaneiro e carne de porcelana. A bem dizer e sem querer correr o risco de chover no molhado o nosso senhor era diferente deles. Para quê alongarmo-nos nos detalhes que já atrás descrevemos?

Era raro, apenas, e só. L estava ao balcão a pedir uma água e a pagar a conta, M queria pagar a sua, detestava que L se antecipasse mas o gelo dos pés era espesso e mais espesso se tornou quando viu a amiga a cumprimentar o pequeno grupo de desconhecidos que acabava de a congelar. Quando regressou à mesa, M olhou-a com pasmo:

-Conhecê-los?

-Conheço o de cabelo preto e a rapariga de cabelos louros, os outros conheço de vista. Da noite de cá. O gajo do lenço nunca vi. (…) Estranho nunca o ter visto. Tenho a certeza de que se ele andasse pelos sítios da zona, não passaria despercebido. Nesta fauna tudo se confunde quando se quer ser diferente.

-Eu já o vi.

-Ah então conheces o ilustre e ainda dizes que nada de novo se passa por lá.

-Não é caso para tanto. Eu não o conheço, apenas o vi algumas vezes.

-Espera lá, algumas vezes?

-Eu conto mas se calhar é melhor irmos andando, já viste as horas?

-Foda-se é mesmo tarde e eu a pensar que ainda dava para te levar a outro sítio…

-Esquece lá isso.

O grupo estava acomodado num recanto almofadado e conversava. O cavalheiro de que as amigas se interpelavam estava entre tabaco e chá a admirar a fauna e de quando em vez entrava na conversa dos que o acompanhavam. Quando M se levantou, não pôde evitar que os olhos lhe fugissem para ele. Estranhamente, ele não desviou olhar e esboçou um sorriso mordaz. Inspirou de um trago o último fôlego do cigarro e voltou para a conversa.

Elas já estavam a caminho de casa.

-Foi um pouco estranho. Sabes que por lá nunca costumo ver ninguém muito diferente. Quer dizer, realmente diferente. E os que se destacam, já os conheço de vista. Não que não haja pessoas interessantes na comum aparência, mas não lhes ando a perguntar...

Sabes como a nossa forma exterior é uma extensão de nós mesmos. Como diz um escritor, que agora não recordo o nome, o ideal seria o interior ser completamente respeitado pelo exterior ou algo do género… Bom, um dia fui até à loja de discos e vi-o. Eu estava a subir as escadas e ele descia. Olhei para ele, como olharia fosse para quem fosse e fiquei perplexa porque não esperava ver alguém assim por ali. Não que fosse bizarro mas acho que quando estamos despercebidos a desviarmo-nos porque esperamos ver uma senhora rabugenta e cheia de compras e depois... enfim… Ele olhou também, mas acho que não fez muito caso. Estranhei porque ele era fortuito, ele continuou porque eu era mais uma (…).

Eh pá... acho que estamos a dar demasiada importância a esta treta mas ok. Quando cheguei ao cimo das escadas ainda pensei em esperar para ver para onde ele ia mas ganhei juízo e fui ler para aquele jardim. Fiquei lá umas duas horas. Quando o sol se começou a pôr levantei-me e, de repente, vejo-o ao fundo da rua. Era ele, notoriamente. Distingui-lhe mais uns pormenores e fiquei a vê-lo desaparecer à medida que virava a esquina.

-Que cinematográfico.

-Extremamente. Confesso que não quis pensar muito no assunto, mas dei por mim a ir ao mesmo sítio no dia seguinte mas sem sucesso. Não voltei lá, até umas semanas depois, para ler, como sempre. No entanto, não sei por que razão ergo a vista e volto a vê-lo mas desta vez dirigia-se a um banco de pedra a dois ou três metros de onde eu estava. Fiquei completamente embasbacada e senti-me corar como fogo e tentei esconder o rosto no livro e deixar o cabelo tapar-me um pouco. Apercebi-me de que ele se tinha sentado a fumar. Era realmente muito bonito e confesso que fiquei a contemplá-lo por segundos. Contudo, não parecia ligar muito ao que se passava à sua volta. Pus os auscultadores e comecei a ler. Quando ergui os olhos de novo já ele estava a dirigir-se à mesma rua de que te falei e foi-se (…).

-Sim, que é muito altaneiro também reparei. Que se foda. Deixemos o rio à vontade. Precisas é da Babilónia.

-É verdade. Fodas, drogas e rock & roll.

 

VI

 

A semana tinha começado desgraçadamente. O dia estava demasiado quente, o estômago ardia e tinha recebido uma cliente chata como o caralho, a gaja desarrumou três estantes e ainda saiu a reclamar. O que a deixou ainda pior.

Mas será que as putas andam aos pares? Pergunta existencial sem resposta.

Somos obrigados a fingir que sabemos tudo.

Somos obrigados a viver, somos obrigados a ser quatro pessoas.

A decisão foi tomada depois de dias a pensar no possível futuro e, também, no esforço que estava disposta a despender. E o resultado foi tão minúsculo que a resposta desceu de pára-quedas.

Não sabia se o futuro era mais negro que o passado mas sabia que ambos eram escuros. Claro que o emprego não era eterno mas pelo menos era livre de pressões diárias e, se havia algo que M tinha assente, era o facto de que ambição e objectivos nunca fizeram parte do seu dicionário.

As metas a suster eram as contas pagas.

Às vezes, tinha a convicção de que o mundo seria engolido a qualquer instante e de que se veria livre das correntes ou então, de que tinha sujado a sua vida com tinta-da-china e, a menos que recomeçasse com uma nova alma, jamais poderia pensar em futuro.

Nada de muito diferente se havia passado, M tentava entender por que motivo, se não era ambiciosa e se o futuro lhe estava inquinado, ela se sentia tão imperfeita, vazia, vã... Seria ânsia de chegar ao próximo receptáculo?

A moderna obsessão pela individualidade é assustadora. Já ninguém se contenta em ser normal e razoável, todos são assoberbados e desejosos de ouvidos e olhos que os oiçam e bajulem... mas, não é errado generalizar? É?

Tanta vontade de se ser especial e diferente, quando somos a puta da mesma merda a caminhar em círculos, até nos abrirem em cima do mármore gelado com aquela expressão de enfado, um centímetro a mais, um tom mais claro ou escuro, um coração mais atrofiado ou as costelas mais notórias, que diferença faz?

Pois é, nenhuma.

Queremos todos o mesmo.

Caminhamos todos para o mesmo sítio. Lá porque uns dão passos mais pesados ou caminham mais depressa, isso não os cunha de especiais.

Lá porque uma maçã é vermelha num cesto de verdes, não deixa de ser a puta de uma maçã que espera uma boca ou a podridão.

Talvez ajudasse um pouco, se se admitisse que somos todos feitos de carne e ossos.

Podes pôr uma bela coroa, encher os neurónios de Platão ou fazer questão de mostrar aquele diploma na parede mas continuas a ter costelas quebráveis e sangue que apodrece.

publicado por Ligeia Noire às 01:24
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05
Ago 10


(...) E entrou e nem por isso a vida ganhou sentido. Tantas mesas com pessoas, tantos olhos. Tantas dores feitas de medo. Tantos dias passaram. Dias em que ela queria ir. E não, não vale de nada traçar os passos, as cores, as histórias.

Falar das pessoas e das coisas porque nada fora dela lhe interessava. Tudo o que lhe fazia abrir os olhos era sangue. O dela e o dos que o partilhavam com ela. Nada correu bem, nada correu mal. Dependendo da janela a vista nunca se repete.

Há sempre coisas que não estavam lá. Há sempre olhos diferentes dos nossos e se nós pudéssemos usar um par diferente a cada dia nascido, talvez nem precisássemos de falar, talvez tudo fizesse sentido, tudo fosse bom ou tudo fosse simplesmente tudo.

Às vezes ela pensava que tinha força e que aquele era o caminho certo, outras vezes as células eram todas fracas e ela sentia que o caminho não era certo ou errado mas sim, o possível. E, sendo o possível, tudo estava na mesma, nada tinha mudado.

Sempre o possível, sempre a insuficiência de vida ou então a insuficiência de força para a viver. Um ano passou. Um ano, uma cama de manta dourada, uma musica tingida de negritude, uma (...)

 

publicado por Ligeia Noire às 02:15
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