Prelúdio
Viam-se-lhe os pés no fundo do vestido.
O corpo dobrado no baloiço.
As estrelas tinham pé e andavam no veludo.
A noite vestida de nevoeiro.
Para a frente, para trás, os ramos.
O movimento recortava o silêncio.
As árvores ondulavam com placidez.
Noite morna.
Sem seguimento.
Esperava-se calmamente, na apatia de quem mecanicamente espera.
Aquele tempo em que, se fosse uma estória, não haveria pontas.
Há o ali.
O agora.
A cabeça lateja no quarto.
A semana de precária finda-se.
Criei-me contra mim.
Alimento um parasita.
O sangue é em dobro.
Não há paz.
Não acredito em mim.
Uso.
E vitimizo.
A cabeça continua aqui.
Tenho medo.
Estou vazia do lado esquerdo e direito.
Estão vazios os lugares que me rodeiam.
Não tenho vida neste mundo.
Acho-me secular.
I
Hoje faço anos.
Enquanto continuaste a crescer eu estanquei no meu buraco lodoso.
Não quero magoar ninguém.
Todos os outros sou eu.
E eu sou todos eles.
Só existe Deus no mundo.
E todos eles são a repetição de Deus.
A sua viagem experimental por vários casulos.
Sofremos em doses abismais porque Ele é desmedido.
Sofremos como deuses.
Sofremos num só.
Diz-se, que à noite, existe só a verdade das almas e, de dia, a mentira dos corpos.
Eu estou no limbo, não sou metade verdade, nem inteira mentira.
Precisa-se de abundância para morrer.
Porque todas as janelas estão lacradas
Todas as portas são demasiado pequenas.
De um lado e do outro.
A pequenez da impossibilidade.
II
É a morte distendida no meu peito
Forçando a continuação miraculosa.
Olhos pesados noite após noite.
Corpo estendido.
Pesadelos que cheiram a instabilidade.
Enrolar-me num novelo e hibernar até ter vontade de estar…
Às vezes chega tão forte e tão violenta que nada a ofusca.
Rebenta-me dentro do peito e o sangue aguado distende-se.
Fico absorta até ao topo, cheia, como uma lâmpada acesa há dias.
E enchem-se os meus braços.
Brotam os meus olhos.
Cerram-se os meus dentes.
E, por fendas nas costas e nos dedos, escorre.
III
Aqui, ali e também acolá
Às vezes, apetece-me ouvir raiva.
Às vezes, apetece-me saber que vocês estão partidos.
Todos.
Vai e vem.
Vai e vem, sempre.
Eternamente.
Sinto-me desalojada.
IV
Tudo e em todo o lado
O que será que move o mundo?
O que nos move?
Qual é a essência?
Por não querermos andar, será que perdemos as pernas?
As estórias de princípio, meio e fim são aquilo que mais recordo.
Mas à medida que crescemos e nos embrenhamos na vida, mais distorcemos o passado, mais sobrevivemos ao presente e mais adormecemos o porvir.
A vida é uma estória mal contada e sem pés nem cabeça.
V
A dama de paus
Sete, o número.
O corpo que não se pode dobrar.
Diz que sabe mas usa a maldade para colher a distracção, de buracos no corpo estático.
Não conhece a estabilidade cerebral.
Tem medo do outro.
E tem cabelos virginais.
As coisas especiais são mantidas em coma, para que o seu cérebro não lhes toque e as distorça.
É a dama de paus.
A flor a fingir.
O corpo de máscara de vida transviada.
Dorme.
Não dói.
A antecâmara.
Lembro-me.
Sou uma velha de séculos.
Perdida neste mundo.
Uma velha que prossegue a reencarnar em sítios deslocados e pessoas que não são dela.
Não tens culpa, disseste-me para dormir.
Eu sou asfixiante.
O estado de embriaguez.
O estado de corrosão.
O sentido de anestesia.
A antecâmara.
Não dói.
Dorme.
VI
A religião cristã nasceu do sangue, proliferou pelo sangue e só será lavada pelo sangue.
VII
A espada que te fere é aquela que te salva
Perdoar de olhos fechados
O que te ficou eu não quero.
Uma montanha sem escadas nem carreiros.
Precisava de poder carpir.
Carpir o que criei com aquelas sementes.
Como é fácil ao corpo a sepultura disse um dia Camões.
VIII
Conta-me uma história
Conta-me uma história.
Sou uma ovelha.
Uma ovelhinha de lã branca.
E não sei de nada.
De nada sei eu.
Ando por terras desconhecidas.
Marcam-se carreiros ardilosos nas minhas patas descobertas.
Deslizo por entre um pardo pântano, saio de lá rã e procuro matar a fome.
Tenho a pele viscosa e as folhas mortas cobrem-na.
Agora sou boneca.
E os meus olhos não se movem, as pálpebras fecham-se sobre eles.
24 de Agosto, 2009