07:45
Estou no quarto, sozinha, as cortinas não são opacas o suficiente para ocultarem a evidência da manhã que não quero aguentar, antes pelo contrário, são caramelizadas e transparentes.
Foram os melhores dias da minha vida, podia contar-te tudo mas não quero, foi um ritual de luz negra e vermelha de velas que só a nós pertence.
Cheiro-o em todo o lado, arrumo a garrafa de vodca polaca que o pai lhe ofereceu, a de sumo de maçã que comprámos numa pastelaria ao calhas (bolas, como ele gosta de sumo de maçã…) e a de água para o saco de lixo improvisado.
Ali está a toalha, ali, a um canto, deito-me na cama grande e tento dormir, não consigo, deito-me na pequena e fecho os olhos, durmo?
Se calhar dormi, não sei, não consigo respirar bem. Levanto-me um bocadinho, encosto-me à travesseira e fixo os olhos no vestido com que cheguei e que usei ontem também e que está, também, ali meio dobrado na cadeira, ainda deve cheirar a vinho verde branco fresco que nele foi entornado ontem, tenho de usar outra coisa… umas calças talvez, sim, umas calças e um casaco.
Está frio e nevoeiro, agradeço-te Supremo, agradeço-te pelo frio, preciso de acabar de fazer a mala, ver debaixo das camas, guardar os trocos na carteira, ir à casa de banho buscar o champô e a pasta de dentes… não me deixes pensar Supremo, olha, abrirei a janela e o ar matutino far-me-á sentir melhor.
Assim faço.
A vista é amontoada, grafitis por todo o lado, ah como os odeio! Aos rabiscos e a estas gaivotas que jamais se calam e que, em conluio com as melgas, me não deixaram dormir em condições.
Não penses, mantém-te ocupada.
Fomos ao alfarrabista do costume, não tinha os livros que procurava… levei a aparição por um euro, acho que o vou ler na estação, afinal de contas serão quatro horas de espera e preciso de escapar por um pouquinho que seja.
As lágrimas despontam outra vez, maldito sejas espaço e maldito sejas tu também ó tempo.
As gaivotas continuam o seu horrendo crocitar e o quarto parece-me uma masmorra, sinto-me a asfixiar.
Estou tolhida.
Amo-o e tento não pensar muito nisso para que os pulmões não se adelgacem mais… Quero ir embora deste sítio mas não quero ir embora na verdade.
Tenho medo e cheiro-o em todo lado.
Ontem, antes do jantar, não conseguia estancar o pranto, doíam-me tanto os olhos… Deveria brotar sorrisos borboleteantes e caricias doces mas ah Supremo… como me esmaga a dor da partida… sentia ali que não sabia ainda lidar com aquilo que sentia, quão pequena e marginal era eu perante tamanho tormento, tamanha abundancia de impossibilidade.
Ele, silencioso, pôs o telemóvel a carregar e foi tomar banho, tirei os sapatos, apenas, e deixei que a lingerie me constringisse enquanto me enrolava e fechava os olhos para que tudo ficasse bem.
Em cima da cama repousavam os discos que ele comprou umas horas antes e a caixinha vitoriana que me ofereceu, caixinha de madeira tão bonita… ao olhá-la vem-me à memória o entusiasmo da senhora comigo, com ele e com a nossa história. Embevecida contou-me sobre si e sobre a sua paixão por todas as coisas belas e delicadas que tinha na loja e de que eu também gostei muito. Perguntou-me coisas, apresentou-se, ah o sonho americano ainda, suspirou ela (ele zombou quando lho traduzi no caminho de regresso). Ele estava lá ao fundo com o marido dela, Alberto, assim se chamava o dono. O Alberto ia-lhe mostrando velhos leitores de vinil e máquinas de escrever, a esposa Maria mostrava-me nesse instante outra caixinha de madeira com arabescos na tampa e forrada a veludo verde, havia um baúzinho de madeira negra e floreados brancos mais bonito mas ela gostava mais da outra.
Olhei-o enquanto este se deliciava com a máquina de escrever de teclas brancas que estava encostada à parede numa mesinha. A que a mãe lhe ofereceu de madeira envernizada, clara é mais bonita, mais graciosa, pensava eu.
Ele percebia que eu e ela falávamos dele porque mencionei o seu nome, sorriu em protesto. A Maria pediu que voltássemos lá um dia, assentei e sorri, ofereceu-nos os discos e só cobrou a caixinha, ah as aventuras! A vida que só se vive aqui e uma vez, arrematou com ar quimérico e saímos.
Tudo isto se me revolvia na tempestade que desembocava do peito ao cérebro sem precedentes, enquanto repousava inquieta e em profusão de cabelos.
Ele lia na banheira e eu sentia que ia morrer de sofrimento contido. Tão difícil se nos apresenta a tarefa de desviar a atenção do indizível. Não havia coisa alguma em que pudesse desaguar o pensamento e subsequentemente me fosse abrir as narinas e descansar o peito.
Abri a janela e deixei que o ar nevoeirento e nocturno me abraçasse um bocado e chorei outra vez. Sentia-me partida e infinitamente desolada.
Regressado do banho, deitou-se na cama grande, abriu o livro e continuou a ler, fechei a janela, tentei pensar nas coisas mais banais e aborrecidas de que me lembrava. Ele chamou-me, chamou para que me deitasse ao seu lado, o direito.
Fechou o livro, talvez tivesse lido apenas duas páginas. Era um livro de capa castanho-escura, grosso e volumoso, sobre as aventuras do Crowley na Alemanha, acho, não sei, apenas acho porque estava preocupada, triste e a respirar às metades.
Ajudou-me, pausou-me, protegeu-me, beijou-me, abraçou-me, salvou-me como lhe é apanágio.
Tentámos ver televisão para que o tempo que não queríamos que passasse, passasse porque o tempo tem de, tem sempre de… ir, mover, circular, tic tac, tic tac.
Filme aborrecido de meados dos noventa, filme que me fez lembrar daqueles romances de bolso à venda nas tabacarias. O sono ia puxando as pálpebras, ele foi descansar um bocado para a cama pequena,
O tempo de passar deve ter passado um bocadinho porque acordei sobressaltada com o toque do telemóvel, soergui-me e atendi.
Eram horas.
O coração esquadrinhou-me as entranhas, abracei-o e peguei-lhe na mala mais pequena.
A noite fria e aveludada pelo nevoeiro deu-me um arrepio inesperado, palavras curtas, beijo curto, abraço espartilhado.
Colocámos as malas na bagageira, ele voltou-se, dissemos até breve e abraçámo-nos.
Partiu, foi, ido.
Eu… eu fiquei ali, mesmerizada, arreigada ao chão, cheia de frio com um vestido de chiffon negro pejado de flores silvestres, renda e que ainda cheirava a vinho branco porque tudo estava arrumado e nada mais havia para vestir e, também, porque achei doce acaso ser o mesmo com que o recebi.
Chorei, cravei as unhas nas conchas das mãos e fiquei ali, assim de madrugada, sombria, enquanto um varredor de ruas observava e seguia o seu caminho ao mesmo tempo.
Subi, embrulhei-me na cama e as lágrimas alojavam-se, quentes, no pescoço.
Amanheceu, não sei se dormi, estou aqui e amo-o e estarreço-me, não por ama-lo mas pelo sortilégio que tudo isto é.
E falar do porvir, de rotinas ou pessoas… mareia-me e desola-me.
A tristeza que sinto é só minha e é triste.
Encontrei o filho-da-lua, desatei o laço branco e agora quero dormir, estar sozinha e não me mexer muito porque ele já não está e eu continuo, perduro-me.
I will take you away with me.
Once and for all.
Time will see us realign.